Da Biopolítica à Psicopolítica

A sociedade moderna depende de novas formas de poder e dominação para moldar indivíduos de acordo com sistemas produtivos que geram riqueza. Na sociedade disciplinar, a disciplina é negativa para os "desviantes" visados pelo poder da psicopoder. O regime neoliberal usa a neuro-aperfeiçoamento para otimizar o desempenho psicológico, criando uma liberdade idealizada que defende a ideologia dominante - a matriz da sociedade contemporânea. Esta é a dinâmica de poder do mundo contemporâneo.

Este artigo é uma continuação de “O Que É a Matrix?“.

Para entender onde estamos, é preciso entender de onde viemos. A simbologia da Red Pill funciona dentro da atual lógica de poder que Byul-Chul Han (2018) chama de psicopolítica, que é a superação da antiga biopolítica, de Foucault (XXXX). Mas o que é a biopolítica primeiramente? Façamos um pequeno mas necessário desvio para nos localizarmos conceitualmente. Foucault (Idem) entendia a sociedade moderna pós revolução francesa como dependente de novas formas de poder e dominação. Com a ascensão do liberalismo a sociedade não se encontrava mais sob a liderança de um rei; um senhor; um soberano, como era o caso das antigas sociedades de soberania, onde o controle sobre a morte marcava o fluxo de poder naquele sistema de produção: produção agrária. Através do discurso iluminista do progresso científico, a nova sociedade engendrava um aumento da produção de bens de consumo e consequentemente do poder de suas novas burguesias, que se contrapunham ao antigo poder soberano; monárquico.

A manutenção do desenvolvimento saia então das mãos do soberano para as mãos do mercado através da racionalidade do método científico e a categorização sociológica de todos os aspectos da vida, que marcavam o entendimento de progresso no iluminismo. Assim surge a biopolítica (FOUCAULT, XXXX) como forma de controle sobre os corpos na chamada sociedade disciplinar. Esta forma de controle se apoia na necessidade de categorização de diferentes aspéctos da vida a partir da imposição de normas ideologicamente desenvolvidas que orientem o desejo dos sujeitos. Novas formas de subjetividade, ideais de corpo e estatísticas a respeito de funções físicas dos trabalhadores, nascimentos e óbitos entram em cena; todas categorizações biológicas.

O liberalismo, motor econômico e filosófico da sociedade disciplinar, necessita de categorização geral de todas as funções do corpo para que este seja devidamente orientado ao seu devido lugar de produção. As categorizações disciplinares evoluem para ideais morais e culturais. Magro e gordo, bonito e feio, rico e pobre, heterossexual e homossexual, saudável e doente. Estes ideais, no entanto, não são historicamente universais ou mesmo concretos. São valores subjetivos mas com grandes implicações para aqueles considerados “deviantes”. Assim se da o poder negativo da disciplina. Existia o normal totalizante, e o anormal, o que foge à regra. Nos sistemas repressivos do século XX impunha-se controle através da negação, da defesa imunológica contra o outro.

Esse século foi uma época imunológica e a ação imunológica era definida como ataque e defesa. Assim como no sistema imunológico dos organismos, também na sociedade havia uma divisão nítida entre próprio e estranho, ou entre amigo e inimigo. Esse dispositivo imunológico ultrapassou o campo biológico e adentrou o âmbito social, inscrevendo uma cegueira: pela defesa, afasta-se tudo que é estranho. Mesmo que o estranho não tenha nenhuma intenção hostil, ele deve ser eliminado devido à sua alteridade.

(HAN, 2010, p.1)

A moldagem subjetiva – a necessidade de categorização – da sociedade disciplinar não permite individualidade num sentido que contraponha o fluxo de produtividade, de geração de riqueza para a máquina que gera riqueza. O capital, lembremos, é valor que gera valor. Na filosofia de Foucault, o liberalismo ironicamente desnuda o mito da promessa de libertação do indivíduo na modernidade, enquanto as forças produtivas da modernidade não permitem desvio das normas positivas de existência em sociedade. Assim, o poder disciplinar gere a vida através da manutenção da negatividade, da interdição. Você NÃO DEVE ser vagabundo, você NÃO DEVE ser gay, você NÃO DEVE cometer crimes. Afinal, o que mais você haveria de ser se não um tradicional operário ou trabalhador da lavoura, pai-de-família, com uma vida como a de todo mundo? A negatividade da disciplina materializava-se em suas estruturas simbólicas: da família, da fábrica, da igreja, da escola, da prisão, espaços de confinamento que separavam a vida de trabalho da vida pessoal. A biopolítica como forma de controle da vida social dependia destes espaços para a imposição da hierarquia disciplinar.

Foucault ressalta que a principal função das instituições no estrato sócio-histórico da sociedade disciplinar é a de normalização, implementando práticas classificatórias hierarquizantes e distribuindo lugares. […] O que um estabelecimento visa é controlar os desvios dos sujeitos enquanto indivíduos, esquadrinhando seus comportamentos e efetuando sobre eles uma vigilância constante.

(BENELLI, 2014, p.17-18)

A própria arquitetura – marca do espaço físico, material – das construções que simbolizam o poder disciplinar (como a igreja, os tribunais e escolas) impõem sua influência a partir de seu poder simbólico, imagético, que se apresenta como palpável, presente e, portanto, passível de confinamento. É no confinamento, no espaço fechado que opera a disciplina. A onipresença da disciplina – característica do controle –, no entanto, depende de abertura. É preciso que os fluxos de disciplina corram pelos diversos setores da sociedade, antes fechados.

***

À medida que a produção material aumenta, surge a publicidade para direcionar a venda deste excedente. Enquanto que na aurora da sociedade disciplinar a produção girava em torno da mercadoria em um nível mais básico,  mais palpável e direcionado à subsistência, eventualmente a produção passaria a ser também virtual, psíquica, imaterial. São os bens de consumo da indústria cultural; filmes, jogos, programas de tv, a liberdade da Coca-cola, o hype dos tênis da Nike, o glamour de um perfume da Channel, enfim. Estados emocionais, subjetivos, tornam-se objetos de desejo e, portanto, de consumo. Essa caixa de pandora foi aberta por Edward Bernays, sobrinho de Freud, que se baseou nas teorias psicanaliticas do inconsciente humano para criar a publicidade moderna e assim ajudar a vender o excedente produtivo de sua época. Até então, o capitalismo era guiado pela necessidade. O mercado atendia a demanda à medida que ela surgia. Isto agora era passado. Bernays inaugurou a lógica de criação de demanda e produção de desejo. Eis aqui o primeiro embrião do que viria a um dia se tornar a Matrix: a máquina de hiper-realidade que guia os discursos hegemônicos.

Uma geladeira não servia mais apenas para refrigerar comida, mas também para compor a imagem ideal de dona de casa prendada que o “demográfico feminino” aprendera com as revistas e os comerciais de TV. O carro não é mais apenas uma forma de transporte – em uma sociedade rodoviarista que é construída prevendo e gestando este tipo de necessidade –, agora ele é também uma extensão do ego do consumidor masculino. Os bens de consumo não mais respondem à supressão da necessidade. Era preciso criar estímulos para fazer a economia girar. Marx já enfatizou que uma mercadoria não é apenas um objeto que compramos e consumimos. Uma mercadoria é um objeto carregado de qualidades teológicas e metafísicas. Sua presença sempre reflete uma trasncendência invisível. É o fetiche da mercadoria. Esta transcendência é agora o que guia a produção de valor e de desejo. E só vai piorar.

Com o avanço das tecnologias digitais, automatização das fábricas, financeirização da economia, supressão dos sindicatos e o refinamento das técnicas publicitárias, caminhávamos para a próxima etapa do poder; a já citada sociedade de controle (DELEUZE, 1990), onde a produção de bens de consumo dá lugar à economia de serviços como principal motor de produção. Neste novo paradigma, o corpo perde gradativamente seu espaço de protagonismo na produção capitalista e a mente vem tomar seu posto, intermediada pelos computadores. O exercício do poder, portanto, não será mais na proibição física dos corpos (você PRECISA ser um trabalhador disciplinado para conseguir comer e sobreviver), mas no estímulo mental da produção e desempenho (você PODE ser quem quiser se consumir os produtos certos, portanto, trabalhe).

A sociedade de controle não seria, então, um descarte do conceito de disciplina, mas uma superação uma vez que novas forças entrariam em jogo. A onipresença da comunicação é a principal delas. O controle é marcado pela não definição dos limites do poder das instituições. As fronteiras do poder na sociedade de controle são difusas e abertas, alheias a qualquer confinamento, enquanto que na sociedade disciplinar são pontualmente marcadas e bem definidas, fechadas. Estas aberturas de fluxos de poder eram gradativamente abertas através da popularização da internet. À medida que os computadores tomavam conta de cada vez mais setores da sociedade e o poder da sociedade de controle amarrava todos os aspectos da vida cotidiana, emergia o que Richard Barbrook e Andy Cameron chamaram em 1995 de Ideologia californiana. A Ideologia californiana pressupõe uma fé quase que messiânica nas novas tecnologias e no entendimento de que os computadores resolveriam todos os problemas da humanidade.

Esta nova fé emergiu de uma bizarra fusão da boemia cultural de São Francisco com as indústrias de alta tecnologia do Vale do Silício. Promovida em revistas, livros, programas de televisão, páginas da rede, grupos de notícias e conferências via Internet, a Ideologia Californiana promiscuamente combina o espírito desgarrado dos hippies e o zelo empreendedor dos yuppies. Este amálgama de opostos foi atingido através de uma profunda fé no potencial emancipador das novas tecnologias da informação.

(BARBROOK; CAMERON, 2018, p.11)

Com o fim da União Soviética e o declínio das experiências do Socialismo real do Leste europeu, as esquerdas e direitas estadunidenses se unem com entusiasmo ao projeto libertário do Vale do Silício. A energia revolucionária dos Hippies dava as mãos ao (ou era cooptada pelo) empreendedorismo dos Yuppies da era Reagan. Era um projeto de pura positividade que se via livre de seu contraponto ideológico. Assim nasce o sonho utópico do libertarianismo tecnológico que guia as maiores mentes da Big Tech até hoje. Este tema será aprofundado no capítulo seguinte.

Uma vez que os novos burgueses dessa nova “classe digital” (BRARBROOK; CAMERON, 2018, p.16) do Vale do Silício se tornam a classe dominante, a Ideologia californiana se torna a ideologia dominante. Uma vez garantido o controle – garantida a influência ideológica da tecnocracia californiana na ordem econômica mundial –, a ordem agora é de maximização; desempenho. O imperativo do capital tecnológico é explorar, viabilizar e acelerar novas formas de produção. A maior destas novas formas de produção é a extração do que é chamado hoje de “petróleo do século XXI”: dados. Esta mudança na ordem econômica muda radicalmente a dinâmica do poder.

A sociedade de controle descrita por Deleuze (1990), teria sido um conceito transitório. Elas são hoje o que já deixamos para trás. A sociedade de controle é o que sucede a disciplina biopolítica (FOUCAULT, XXXX) mas também antecede o desempenho psicopolítico (HAN, 2018), uma nova e mais sutil forma de controle, que só é possível graças à onipresença da ideologia californiana no trabalho contemporâneo. Quando tudo se torna classe digital sob domínio dos senhores Tecno-Feudais (VAROUFAKIS, 2023) do Vale do Silício, sua ideologia se torna nossa Matrix.

Podemos dizer então que a sociedade do desempenho por onde opera o poder psicopolítico descrita por Han (2018) é a evolução da sociedade de controle de Deleuze (1990) – que é ela mesma uma evolução da sociedade disciplinar de Foucault (XXXX). A lógica do desempenho psicopolítico é o que garante que o indivíduo se torne mais ágil, ambicioso e adaptativo na sua função produtiva através da positividade do PODER, em vez da negatividade do DEVER.

A virada para a psique e, em consequência, para a psicopolítica, também está relacionada à forma de produção do capitalismo atual, pois ele é determinado por modos imateriais e incorpóreos. São produzidos objetos intangíveis, como informações e programas. O corpo como força produtiva não é mais tão central como na sociedade disciplinar biopolítica. Em vez de superar resistências corporais, processos psíquicos e mentais são otimizados para o aumento da produtividade. O disciplinamento corporal dá lugar à otimização mental. Assim, o neuro-enhancement se diferencia fundamentalmente das técnicas psiquiátricas disciplinares.

(HAN, 2018, p.40, grifos do autor)

O neuro-enhancement é a ordem do poder psicopolítico. Com o amadurecimento das tecnologias da informação das últimas décadas, as formas de categorização da vida atingem seu estado mais extremado graças ao modelo de extração de dados das redes sociais. As Big Techs são os grandes colossos da nova sociedade psicopolítica do desempenho.  Nesta nova formação social o controle acontece por meio da imposição da positividade libertária, VOCÊ PODE SER UM MILIONÁRIO, VOCÊ PODE CONSUMIR O QUE QUISER, VOCÊ PODE FALAR E FAZER O QUE QUISER, VOCÊ PODE!

O poder pode se expressar como violência ou como repressão mas não se baseia nisso. Não é necessariamente excludente, proibitivo ou censor. E não se opõe à liberdade: pode até mesmo usá-la. Apenas em sua forma negativa é que o poder se manifesta como violência negadora que verga as vontades e nega a liberdade. Hoje, o poder assume cada vez mais uma forma permissiva. Em sua permissividade, ou melhor, em sua afabilidade, o poder põe de lado sua negatividade e se passa por liberdade.

(HAN, 2018, p.26, grifos do autor)

Eis o dilema da liberdade (HAN, 2018, p.9). O psicopoder precisa de abertura, ao contrário do biopoder, que precisa de confinamento. Esta abertura se aproveita do sentimento de liberdade para diferenciar-se das antigas formas de poder. É o poder inteligente – smart power (HAN, p.25). O neuro-enhancement otimiza nos sujeitos os fluxos de positividade que permitem o psicopoder fluir. É a lógica da otimização mental que faz um sujeito moldar sua cognição e visão de mundo para melhor aderir a socialização dentro de um grupo, no novo paradigma das redes digitais. Assim se criam exércitos de sujeitos unidos pela angústias comuns que só podem ser sanadas com ação direta. A ideia de “liberdade” é o escudo que protege este fluxo.

A técnica de poder do regime neoliberal assume uma forma sutil, flexível e inteligente, escapando a qualquer visibilidade. O sujeito submisso não é nunca consciente de sua submissão. O contexto de dominação permanece inacessível a ele. É assim que ele se sente em liberdade.

(HAN, 2018, p.26)

A liberdade surge como o fio condutor da positividade que guia os fluxos do poder psicopolítico. A psicopolítica assume a forma das relações públicas, permissiva e afável como a publicidade no exercício do poder. O gozo, portanto, será o núcleo no qual as disputas de poder giram em torno. A Matrix, a manutenção da ideologia dominante, se alimenta de gozo. Assim se dá o domínio silencioso da política libidinal.

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Luís Meira

Mestre pelo programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Linguagens, Mídia e Arte da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com o trabalho "Infiltrado no Chan: Economia e Identidade do ódio", sob orientação do Prof. Dr. Carlos Alberto Zanotti, onde foi bolsista do CNPq. É graduado em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela Universidade Católica de Pernambuco. Teve experiência como diretor de arte nas agências Shifty e 4com, em Recife. Possui conhecimento básico da língua alemã (Goethe Institut, A2), fluência na língua inglesa (Alpha Collegue of English-Dublin, B2+), atualmente estuda a língua japonesa (NCL-Recife, A2) e possui noções básicas da língua francesa (Aliança Francesa-Recife, A1.1).

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