– Você acredita em destino, neo?
– Não.
– Por que não?
– Porque não gosto da ideia de que eu não estou no controle da minha vida.
– Eu sei exatamente o que quer dizer. Deixe que eu diga porque está aqui. Você está aqui porque você sabe de algo. O que você sabe você não sabe explicar. Mas você sente. Você sentiu a sua vida toda, que tem algo de errado com o mundo. Você não sabe o que é, mas está la, como um espinho na sua mente, te deixando louco. É este sentimento que lhe trouxe até mim.Você sabe do que eu estou falando?
– Da Matrix.
– Você quer saber o que é? A Matrix está em todo lugar. Está ao nosso redor, até mesmo agora nesta sala. Você pode vê-la quando olha pela sua janela, ou quando liga sua televisão. Você pode senti-la quando vai ao trabalho, quando vai à igreja, quando paga seus impostos. É o mundo que é colocado a frente dos seus olhos para te cegar da verdade.
– Que verdade?
– Que você é um escravo, Neo. Assim como todo mundo você nasceu em amarras, nascido em uma prisão que você não pode cheirar ou saborear ou tocar. Uma prisão para sua mente. Infelizmente ninguém pode dizer o que a Matrix é. É preciso vê-la você mesmo. Esta é sua última chance. Depois disso não há volta. Se você tomar a pílula azul, a historia acaba, você acorda na sua cama e acredita no que quiser acreditar. Se você tomar a pílula vermelha, você fica no país das maravilhas e eu te mostro o quão profunda é a toca do coelho.
(Morpheus abre as duas mãos e oferece a Neo uma pílula azul e uma pílula vermelha.)
O que é a Matrix?
Matrix, das irmãs Watchowski, é uma daquelas obras que furam a bolha do cinema. Que mesmo sem se ter visto, é possível reconhecer a iconografia, cenas, diálogos e símbolos. É um marco da cultura pop que talvez tenha na famosa Red Pill seu maior legado. A simbologia da pílula vermelha vem do primeiro filme, de 1999. Ao fim do primeiro ato o protagonista Neo é confrontado com a escolha de tomar uma pílula azul, que lhe faria permanecer em um estado de fantasia, de ilusão, proporcionado pela simulação da Matrix, ou tomar uma pílula vermelha, que lhe faria “despertar” da simulação da realidade em que vive e enxergaria a “verdade inconveniente”. Thomas Anderson (nome pelo qual Neo é chamado na Matrix) é o arquétipo de um típico trabalhador de escritório do final dos anos 90, um average guy com um emprego entediante de manhã mas que pelas madrugadas assume sua “verdadeira identidade”: o famoso hacker Neo. Ele se divide entre seu eu-ideal (o hacker Neo) e seu ideal-de-eu que a Matrix lhe impõe (o funcionário Thomas Anderson). A pílula vermelha daria a Neo o acesso à verdade do mundo, o permitindo acessar seu “verdadeiro eu”, que a Matrix suprime. Mas o que é a Matrix?
É um desafio tentar descrever o que é a Matrix. O próprio Morpheus, mentor de Neo diz que é impossível defini-la; é preciso vê-la por si só. Aqui talvez esteja a própria razão do sucesso e relevância de Matrix como filme, que até hoje está presente no imaginário coletivo mais de vinte anos depois de seu lançamento: a obra é polissêmica, tem vários significados que podem ser entendidos a depender de quem o assiste. E esta é a definição de sucesso na industria cultural, a forma de um produto bem sucedido, que atinge a todos os públicos de forma capilarizada, representando algo especial para cada um. Segundo o filósofo esloveno Slavoj Zizek (1999) Matrix funciona como um teste de Roschach, aquele teste em que o analista mostra cartões com borrões de tinta e o analisando as interpreta. A polissemia do filme permite tanto que psicanalistas Lacanianos conseguiam ver na trama os conflitos entre o Real, o simbólico e o imaginário; quanto teóricos da escola de Frankfurt possam ver a estrutura da industria cultural em funcionamento; enquanto marxistas podem identificar sem dificuldades o processo de alienação capitalista como o centro do enredo. Da mesma forma, teóricos da conspiração conseguem ver no filme uma legitimação de seus “mitos” e pensa-los de acordo com os referenciais simbólicos que o filme traz.
Mas se for necessário defini-la, o que afinal seria a Matrix? Para Zizek (1999), é o “grande Outro” lacaniano; a ordem virtual simbólica que estrutura nossa realidade.
Esta dimensão do “grande Outro” é a da alienação constitutiva do sujeito na ordem simbólica: o grande Outro puxa nossas cordas, o sujeito não fala, ele “é falado” pela estrutura simbólica. Em suma, este “grande Outro” é o nome da Substância social, de tudo aquilo pelo qual o sujeito nunca domina plenamente os efeitos dos seus atos, isto é, pelo qual o resultado final da sua atividade é sempre outra coisa com em relação ao que ele pretendia ou antecipou.
(ZIZEK, 1999)
A Matrix seria então uma metáfora narrativa do superego coletivo, a estrutura simbólica que rege a ordem social. É o conjunto de ficções que estruturam a realidade: são as ideologias dominantes. E “sair da Matrix” significa ver além dessas estruturas, ver além das ideologias. Mas esta definição não basta. É preciso contextualizar cronologicamente o filme.
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No final do primeiro filme o agente Smith, principal vilão da franquia, diz a Morpheus que a simulação foi construída com base no que ele chama de “auge da sociedade”: o ano de 1999, que é também o ano de lançamento do filme. A fala de Smith denota o poder profético de uma metalinguagem inquietante. Apenas dois anos depois, no dia 11 de setembro, os Estados Unidos seriam vítimas do maior ataque terrorista em seu território, inaugurando a era da “Guerra ao terror” encabeçada pelo Governo Bush filho, e que precederia a crise de 2008.
O ano de 1999 marcava uma década da queda do muro de Berlim e das experiências socialistas do século XX. Dez anos de hegemonia do capitalismo norte-americano, um período conhecido pelo espírito do “Fim da História” (FUKUYAMA, 1999), o sentimento de que no mundo não havia mais lugar para disputas ideológicas e o capitalismo neoliberal se entendia como uma espécie de “sistema final” onde a humanidade teria chegado ao seu cume organizacional. Na lógica do filme, faz todo sentido que as máquinas, como uma inércia do espírito tecnocrata neoliberal, tenham baseado a simulação da Matrix no ano de 1999, que pode ser visto como o ponto máximo de um modelo de funcionamento ideológico ideal: quando, justamente, se pensa que está além de todas as ideologias. Eis a Matrix.
A partir de 2008 fica mais fácil ver como a retórica do fim da história não passava de um wishful thinking do capital norte-americano. Do contrário não estaríamos cercados de novas guerras por procuração nem pensaríamos em uma nova guerra-fria travada pelos Estados Unidos, China e Russia. Mas é neste paradigma supostamente pós-ideológico (ou pós-histórico, seguindo os termos de Fukuyama), que foi possível a rápida ascensão das máquinas que operam a Matrix. Os computadores ficavam cada vez mais populares nos anos 80 e 90 e a tecnologia alcançava cada vez mais facetas da vida cotidiana. A promessa das empresas de computação para o futuro era de que a tecnologia romperia com as antigas formas de poder disciplinar; burocráticas, antiquadas e analógicas. O futuro agora era digital.
Esta mensagem é muito bem comunicada com o icônico comercial do Macintosh no Super Bowl de 1984[1]. A ascensão da Apple e Microsoft com seus computadores pessoais fáceis de usar – em comparação com os antigos computadores da IBM, que dependiam de conhecimento da linguagem de programação para seu uso – decretou o caminho para o estabelecimento do que hoje chamamos de Big Tech. A hegemonia do Big Tech, como propõe Evgeny Morozov (2017, p.32), marca a concretização do que Gilles Deleuze chama de “sociedade de controle” (1992); a sociedade organizada pelos computadores.
A cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se fazer corresponder a um tipo de máquina: as máquinas simples ou dinâmicas para as sociedades de soberania, as máquinas energéticas para as de disciplina, as cibernéticas e os computadores para as sociedades de controle. Mas as máquinas não explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos coletivos dos quais elas são apenas uma parte.
(DELEUZE, 1992, p.2016, grifo nosso)
Estes agenciamentos são precisamente as estruturas de poder que tem nas máquinas apenas o instrumento de sua execução. As relações na sociedade de controle são intermediadas por grandes empresas de tecnologia, que modulam a socialização a fim de gerenciar sua subsistência. Microsoft, Apple, Visa, Mastercard, como donas das estruturas e dos meios de produção dessa nova sociedade, garantiram sua posição como gerentes do novo poder. A aldeia global, celebrada pelos entusiastas da internet no tempo de sua chegada, teria então dado espaço a “feudos” globais mediados pelas empresas de comunicação que, em última instância, nos libertariam de forças opressoras do poder disciplinar não por emancipação, mas pela sua superação.
A crescente digitalização da sociedade engendrava novos medos como o bug do milênio e ansiedades relacionadas à perda de uma essência humana consequente de um enfraquecimento da coletividade social neste novo paradigma. Se a influência das novas e abundantes tecnologias está nos moldando de forma que não conseguimos mais nos reconhecer, o que ainda haveria de humano em nós? Este era o anseio que acompanhava a rápida digitalização da vida. As mudanças eram (e ainda são) muitas, e muito rápidas. Se hoje nos assustamos com os avanços tecnológicos que agora surgem exponencialmente como a IA generativa e realidade virtual, imagine o cenário de quarenta anos atrás. Tanto no ocidente quanto no oriente, estes anseios são presentes em obras de ficção científica como Akira e Ghost in The Shell, nas quais Matrix toma inspiração. Neste imbrólio, surge um novo gênero literário.
A literatura cyberpunk, gênero do qual Matrix faz parte, já expressava este pessimismo na década de 80. “No Future” era o slogan dos punks ingleses e americanos que viam nas políticas neoliberais da era Reagan e Tatcher – aliadas à rápida colonização da tecnologia na vida cotidiana – o fim de qualquer expectativa otimista de vida com o fim do estado de bem-estar social. Grandes clássicos do cyberpunk como Snow Crash, Neuromancer, RoboCop e outros projetavam o futuro sombrio que se avizinhava com a emergência do capital tecnológico, desregulamentação do trabalho e liberalização da economia. Criava-se o imaginário da distopia capitalista/cyberpunk. O mote do cyberpunk é “Hight Tech, Low Life“: alta tecnologia e baixa qualidade de vida. Os cyberpunks, nas estórias, se apropriam da tecnologia que estrutura sua opressão para lutar contra ela.
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Seguindo esta forma narrativa do gênero cyberpunk, Neo eventualmente se torna o “escolhido”, aquele capaz de ver os códigos por trás da simulação e controlar a Matrix. Ele enxerga para além das dinâmicas de poder da sociedade de controle; vê o back-end, a estrutura das ideologias e ficções que moldam o front-end social. Sua caracterização como um hacker, alguém que conhece bem os meios técnicos de poder, é construída para gerar empatia facilmente com um trabalhador de escritório ou mesmo um garoto nerd que se interesse por computadores. É um convite à identificação com o protagonista cyberpunk. O impacto do filme, no entanto, não se apoia tanto na identificação com o arquétipo do personagem, mas na sua jornada de entendimento de que a realidade é, afinal, uma construção que pode ser superada. Aqui entra em cena aquela polissemia de Matrix que lhe permitiu fazer tanto sucesso.
A história de um sujeito que descobre que o mundo que conhece não passa de uma ilusão que esconde um mundo maior é um dos pilares da filosofia ocidental desde alegoria da caverna de Platão. Matrix, como produto da indústria cultural, não tem o mesmo aprofundamento de um tratado filosófico, afinal, trata-se de um filme blockbuster. A filosofia está lá para os fãs de filme cabeça, junto com algumas das mais icônicas cenas de ação do cinema. A ironia que o filme carrega é que ele utiliza o que há de mais avançado na tecnologia computacional de sua época para justamente criticar a onipresença da tecnologia na vida das pessoas, esvaziando a própria mensagem e permitindo a inclusão de sentidos outros. Precisamente aqui está o calcanhar de aquiles da obra e talvez do gênero cyberpunk como um todo. As imagens falam mais alto. É como ver os desenhos de um quadrinho sem ler os balões. E os desenhos em questão são bem estilosos.
Matrix é abertamente inspirado no livro “Simulacros e Simulação”(1981) do Filósofo Jean Baudrillard, cuja capa inclusive aparece em uma das primeira cenas do filme. Baudrillard foi convidado a participar das sequências do longa-metragem tendo, no entanto, declinado. Finalizada a trilogia, o filósofo teceu críticas à obra, alegando que ela teria cometido erros conceituais no que se refere à sua filosofia. Em entrevista ao jornal Le Nouvel Obsertateur, Baudrillard afirma que
o equívoco de Matrix foi retirar a ambiguidade do choque entre o virtual e o real e conceber a Matriz como uma tecnologia de onde é retirado o perigo e o negativo. Uma narrativa esquemática onde o deserto do real (sujo, decadente e perigoso) é substituído por uma tecnologia maquiavelicamente precisa, onde até as anomalias e revoltas já estariam previstas nas equações. Em outras palavras, sob a aparente crítica “Matrix” representaria um sintoma do fascínio cultural pelas tecnologias computacionais. (grifo nosso)[2]
O equívoco de Matrix, para Baudrillard, foi sua simplificação filosófica, sua redução binarista do real e do virtual. O real no filme seria negativo demais e o simulado seria perfeito demais, sem espaços para ambiguidade e ironia, o que estaria muito mais próximo filosoficamente do mito da caverna de Platão do que de Simulacros e Simulação – que aponta justamente para o enfraquecimento das fronteiras do real e do virtual na vida cotidiana. O sucesso de Matrix, no entanto, pode ter sido tão estrondoso justamente por conta deste “erro” filosófico, que permite ao espectador encaixar esta tal “descoberta da realidade” onde bem entender. É a questão da polissemia. A trama da luta maniqueísta do bem contra o mal cria um binarismo que reduz a complexidade da filosofia de Baudrillard, inserindo-a na forma da industria cultural, da jornada do herói, preconcebida pela necessidade de se vender um produto de mídia.
“’Matrix’ é certamente o tipo de filme sobre a matriz que a matriz teria sido capaz de produzir”
(BAUDRILLARD, 2003, idem)
O canal Normose, no Youtube, faz uma excelente análise da crítica de Baudrillard apontando que
Em Simulacros e Simulações, há uma defesa do poder dos símbolos e da disputa de sentido terem mais peso do que a realidade. As pessoas vivem nessa realidade simulada performando a sua beleza perfeita. Para Baudrillard, isso seria um sintoma daquilo que ele chamou de hiper-realidade. E Matrix não colocou isso na trilogia.
Ou seja, a crítica de Baudrillard diz que o que guia a sociedade é a manutenção performática de estados ideais de existência. É a reprodução de papeis sociais e a construção de ficções que guiam a própria sociabilidade, que têm um peso até maior do que a realidade (material) em si. É a hiper-realidade: a realidade mediada pela manutenção ideológica dela mesma. Há de se pontuar que as ideologias, as quais ninguém escapa, são as ficções que moldam nossa realidade. A hiper-realidade é o sintoma superestrutural de um infraestrutura que trabalha para mistificar a relação do sujeito com o mundo. É a Matrix. Ou poderia ser. O filme não explora esta mistura das fronteiras entre o real e o virtual, pelo contrário, as separa. Cria um mundo real e um virtual muito bem definidos, gerando no espectador um estado de gozo criado pelo sentimento de descoberta “da verdade“. Um sentimento maniqueísta, binário, reducionista. Mas precisamente aqui está o núcleo libidinal das novas direitas no século XXI, que permite a negação da realidade (logos) e a criação de fantásticos mundos paralelos nos quais os sujeitos se reúnem em torno (pathos). É o conceito de pós-verdade em poucas palavras.
Este é o afeto que, como propomos aqui, amarra toda rede discursiva deste modo de mobilização de militância digital no qual a Alt-Right se especializou. Matrix se tornou uma obra tão influente que transgrediu as fronteiras da arte e adentrou na gramática política como objeto de disputa de sentidos. É a redução da filosofia de Baudrillard permite que Matrix torne-se vítima de si mesmo e transforme-se em objeto da manutenção da hiper-realidade. E o símbolo agenciador desta performance de “descobrimento da verdade” é a tão famosa pílula vermelha.
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Se não sabemos que é real não podemos resistir. Pegaram sua história, algo que significava tanto para pessoas como eu e transformaram em algo trivial. É isso que a Matrix faz, transforma em arma toda ideia, todo sonho, tudo que é importante para nós.
– Bugs (Matrix: Ressurections)
A Matrix enquanto sistema ideológico hegemônico engoliu a Matrix enquanto arte ao se apropriar da metáfora da pílula vermelha. O quarto filme, Matrix: Ressurections faz deste movimento seu argumento. Aqui ele é mais direto e filosoficamente mais denso para evitar repetir o próprio erro. E talvez por isto ele tenha sido recebido com reações mistas. Na estória as máquinas re-inserem Neo na Matrix e transformam sua história em um jogo. Toda a sua jornada é reduzida a um mero produto que existe dentro da trama. Assim, toda história da guerra das máquinas e humanos contada ao longo de três filmes se torna apenas mais uma lembrança trivial para aqueles que estão conectados à simulação. Uma elegante autocrítica metalinguística, na minha humilde opinião.
O capital, assim como a Matrix, busca colonizar e docilizar tudo que nele circula – mesmo as ideias mais críticas – por meio da estrutura de simplificação que a indústria cultural impõe aos seus produtos em ordem de faze-los circular na dinâmica comunicacional. E quanto mais a tecnologia cria novos formatos e atinge mais pessoas, mais acelerada ela se torna, contra-incentivando a reflexão e o pensamento crítico. À media que os meios de comunicação evoluem e aceleram, a produção cultural se adapta. O meio é a mensagem.
Na época da globalização da internet, o formato modular dos memes assume a forma de reapropriação do capital cultural, que usa a cultura como ponte para reapropriação da ideologia dominante. Na política não existe espaço vago. Uma vez que a crítica ao sistema ocupa um espaço, o sistema se apropria da crítica transformando-o em produto de sua subsistência. A franquia Matrix como um todo se apropria das dinâmicas de poder do capital na sociedade de controle (que mascara e distorce a realidade por meio da ideologia) e as transforma em elementos narrativos. A nova direita estadunidense – que exerce grande influência na direita brasileira –, condensada na figura da Alt-Right, faz este mesmo movimento. Se apropriam do imaginário da Redpill (um elemento narrativo) para atualizar suas dinâmicas de poder e criar uma linguagem que garanta coesão à sua mobilização. É a dinâmica da guerra-cultural que Matrix: Ressurections, como resposta, também segue, o que justifica sua existência mais de vinte anos depois do lançamento do título original.
Porém, há aqui uma novidade. A sociedade de controle evoluiu. A Matrix evoluiu. Os algoritmos de recomendação, a web 2.0, inauguram uma nova etapa do poder: a psicopolítica. Esta é a nova etapa da Matrix na qual ainda estamos presos. E entender esta bagunça conceitual em termos narrativos, com ajuda destes filme que embasam até a retórica da Alt-Right, pode nos ajudar a simbolizar estas novas disputas de poder. Nos termos do professor Cesar de Castro Rocha (2021), a organização discursiva da nova direita é uma esfinge que, se não desvendada, nos devora. E uma vez que esta esfinge se apropria de uma narrativa específica (a retórica da Red Pill), destrincha-la e supera-la é o único caminho para não ser engolido.
“Tivemos informações do oráculo de um novo poder surgindo. Foi a última vez que soubemos dela.”
– Niobe (Matrix: Ressurections)
Continua em “Da Biopolítica à Psicopolítica“.
[1]Nesta peça de publicidade da Apple, se reproduz o imaginário do livro 1984, de George Orwell, onde fileiras de pessoas uniformizadas marcham sincronizadas até uma enorme tela para assistir o discurso da figura totalitária do Grande Irmão enquanto uma mulher foge de guardas na mesma direção, carregando um martelo. Ela arremesa o martelo na tela gigante, que explode. Em seguida aparece o texto narrado: “On January 24th, Apple Computer will introduce macintosh. And you’ll see why 1984 won’t be like “1984”. O Grande Irmão fazia referência à IBM, líder de mercado na época. A novidade do primeiro Macintosh era a interface gráfica como conhecemos hoje, que permitiria que qualquer um pudesse usar o Macintosh sem muita dificuldade, ao contrário dos outros computadores da época. A obra 1984 trata de uma distopia autoritária marcada pela imposição do antigo poder burocrático disciplinar em todos os âmbitos da vida dos cidadãos, mas intermediados por novas tecnologias. O comercial da Apple chegava literalmente explodindo a cara do Grande Irmão, anunciando que o futuro havia chegado, e ele não era como os velhos engravatados da IBM, com sua clássica estrutura de administração disciplinar e de uso complicado de seus produtos. A futuro da Apple era menos hierárquico, fluido, e empoderava o usuário. Disponível em: https://youtu.be/2zfqw8nhUwA?si=mhg7RsosOd2jcbXh. Acesso em 30/01/2024.
[2] Entrevista concedida ao jornal Le Nouvel Obsertateur, tradução disponível em https://revistaforum.com.br/blogs/cinegnose/2012/8/30/matrix-revisitado-por-que-jean-baudrillard-no-gostou-do-filme-29944.html.