O que Trump, Pablo Marçal e João Campos têm em comum?

"– Não há nada mais broxante do que a política", diria alguém completamente desconectado do fazer político contemporâneo. Meu desafio aqui é provar que é o TESÃO que guia a política hoje mais do que nunca. Eu explico...

As palavras chave são: Eros. Libido. Positividade.

Repressão e permissividade

Para formular o seguinte raciocínio eu preciso antes fazer uma breve contextualização histórica. Eu juro que é rápido. O filósofo Byul-Chul Han – coreano radicado na Alemanha – descreve em seu livro Sociedade do Cansaço (2015) a passagem de uma sociedade repressora, disciplinar, de poder negativo (PROIBITIVO), para uma sociedade permissiva que estimula o desempenho, onde o poder é positivo (PERMISSIVO). O catalisador desta mudança é, não surpreendentemente, a internet; a descentralização do poder. O resultado desta mudança de paradigma é uma sociedade do cansaço, do burnout, do fim da separação do horário de trabalho e lazer. Hoje em dia o trabalho não está mais atrelado àquele imaginário disciplinar de segurança, da CLT, dos planos de carreira e horários de serviço bem definidos. O trabalho atualmente, goste ou não, é flexível, intermitente e direcionado pela positividade, ou seja, é o trabalhador que se leva à venda de sua força produtiva; ele é empreendedor-de-si-mesmo, em vez de um operário que faz parte de um corpo produtivo bem definido, como antigamente.

Eis o famoso CEO de MEI. Ele não tem mais as seguranças de antigamente, mas tem a (suposta) possibilidade de ascensão pelo seu trabalho desregulado. A positividade está umbilicalmente ligada à promessa de prosperidade.

E como a comunicação política se adapta a essa nova realidade? Ela passa do paradigma da negatividade disciplinar para a positividade do desempenho. As barreiras da política estão, também, difusas. Não se resumem mais ao comício, ao sindicato, ou mesmo ao período eleitoral. Uma comunicação política eficaz hoje não fala para grupos que se entendem como uma massa trabalhadora unificada – que gera valor diante de um ambiente de poder negativo. Uma comunicação assim, consequentemente, será combativa e negativa. E o negativo não gera likes (positividade). A comunicação política realmente eficaz hoje se adequa à economia do desempenho, uma vez que o modelo da comunicação digital segue esta lógica. Entendo que é precisamente aqui que está o entrave na esquerda no Brasil. À ela lhe falta o MOLHO.

Os mais jovens, familiarizados com a linguagem do meio digital saberão intuitivamente o que “o molho” significa. Mas, havendo que explicar, explico. “O molho” representa um excedente libidinal (ah, agora eu entendi, Luís!). Representa aquele “algo a mais” metafísico que a magia da propaganda garante ao produto (ou ao candidato). É a “liberdade” da Coca-Cola, é o cheiro de livro novo ou a sensação de tirar um celular recém comprado da embalagem. Na publicidade, é o fetiche da mercadoria, do objeto de desejo, que vai além do valor de uso do produto. Nos relacionamentos, é aquele “algo a mais” sobre a pessoa de quem gostamos e não sabemos explicar direito o motivo. “O molho” é o “significante do desejo em linguagem popular. Gerar desejo (ou “hype”) não é nenhuma novidade na política, mas gerar desejo com base na segmentação digital do público sim. Isto só se tornou realidade em 2016, com Trump, e em 2018, com Bolsonaro. E novamente em 2024, com Pablo Marçal (e depois com Trump de novo). Mas o que sustenta o engajamento deste público segmentado? O que é que “fisga” o público direcionado à mensagem do candidato (produto)? Eros. Ou libido. Ou positividade (aqui são a mesma coisa). Quem entendeu isso foi Steve Bannon.

Trump e Big Tech

Por que que Trump e sua equipe podem dizer os maiores absurdos enquanto Kamala Harris aponta absurdos reais ditos por ele e, mesmo assim, ter sucesso eleitoral? Porque Trump representa permissividade, positividade; representa uma ativação e legitimação de identidades até então constrangidas pelo discurso progressista (que alguns chamam de “agenda woke”).

O próprio Trump disse em 2016 que poderia até atirar em alguém em plena quinta avenida de Nova York que, mesmo assim, não perderia um voto. E parece ter sido uma declaração do fundo de seu coração visto que anos depois seria reeleito mesmo tendo comandado uma insurreição após não aceitar o resultado das eleições de 2020, levando assim, centenas de seguidores a invadir o capitólio no dia 8 de janeiro de 2021. Trump representa esta potência, esta positividade que o eleitorado americano médio sentia tanta falta depois do crescimento das políticas progressistas das últimas décadas. Pablo Marçal tenta emular justamente este efeito (mas vou chegar neste ponto mais adiante).

Os invasores do capitólio (assim como os invasores dos três poderes em Brasília) se sentem afetados pela negatividade do discurso progressista, nomeado pejorativamente de “cultura woke”. A própria categorização de tal discurso como “woke” é uma caricatura do uso original do termo: quando afro-americanos se diziam “despertos” para as desigualdades sistêmicas dos Estados Unidos durante o movimento pelos direitos civis. “Woke” hoje é uma forma de representar todo pensamento progressista (aquela ideia de que, por exemplo, brancos talvez não sejam uma raça superior, sabe?) por um verniz de deboche, onde todo mundo que nele se encaixe é associado à figura do Social Justice Warrior (SJW), aquele esquerdista chato e pedante que se acha superior aos demais por não conhecerem de cabo a rabo a obra de Marx. (E essa galera é chata pra caralho mesmo, mas a excessão não confirma a regra). E é isso que o discurso de Trump (consequentemente da direita brasileira como um todo) faz: uma caricatura com efeito positivo a partir de um discurso negativo.

A caricatura é uma redução simplificada da realidade? Sim, mas não importa. Nas redes sociais, movidas pelo like – pela positividade, pelo eros, pela libido – o critério da verdade é a prática algorítmica: aquilo que mantém a coesão de grupo. A grande novidade da política digital é a hegemonia do princípio do prazer como cola que garante a coesão e engenharia social da militância. O princípio da realidade se torna apenas aquela “gota de água fria” que estraga as fantasias comuns do grupo. E o que cola essas fantasias, mais do que os afetos negativos, são afetos positivos: os estímulos libidinais.

Como fazer uma campanha de cunho profundamente racista e ainda assim despertar sentimentos positivos no eleitorado? Ora, é só jogar a lorota de que imigrantes haitianos estão comendo os animais de estimação da população e depois usar a máquina de propaganda do seu parça Elon Musk, o X, para espalhar memes seus salvando os gatinhos e cãezinhos. Quem não gosta de bichinhos, não é? Dessa forma, o racismo (sentimento negativo) de seu eleitor se converte em desejo de proteger essas pobres criaturinhas (sentimento positivo).

A Big Tech é hoje um grande front bélico de manipulação da opinião pública e engenharia comportamental. Ela é a maior arma de guerra-híbrida disponível nesta segunda guerra-fria. E Trump, desde o escândalo da Cambridge Analytica, a usa para fins eleitorais. A parceria Trump/Musk representa esta nova face da comunicação política bélica: um uso aberto e cínico de táticas de guerra psicológica para influenciar o resultado das eleições. O governo Bolsonaro se encarregou de testar estes métodos no Brasil. Uma vez testados na periferia do capital, foi hora de evoluí-los lá no centro. Por isso não veremos uma regulamentação das redes pelas terras do Tio Sam nos próximos anos.

Pablo Marçal e João Campos

Nesse mundo hiper-conectado, onde as grandes narrativas do século passado ruíram, as pessoas procuram o tempo todo na internet subjetividades a serem seguidas. O celular intermedia as novas figuras de autoridade simbólica; os novos referencias a serem seguidos por uma geração que perdeu seu rumo, uma geração desbussolada. Essa gente desbussolada só quer um daddy para seguir e saber como pensar e agir. O que “fisga” o público à estas figuras de autoridade são, precisamente, o eros; a possibilidade de positividade, diante de um mundo cheio de negatividades (o mundo tá chato, né?). Sendo mais nietzschiano: é a vontade de potência aplicada à economia da atenção. Além disso, há uma demanda por modelos de subjetividade, por figuras a serem espelhadas, em outras palavras, por lideranças reflitam as dores das grandes e rápidas mudanças socioeconômicas.

“Vivemos em tempos de enorme desconfiança na mídia tradicional, e as pessoas confiam somente nas pessoas, e influenciadores são pessoas,” diz CJ Pearson, copresidente do conselho consultivo de jovens do Comitê Nacional Republicano (da campanha do Trump). “Eles buscam nos influenciadores o que devem se apaixonar [sic], com o que devem se indignar, com o que devem se mobilizar, e foi exatamente isso que queríamos fazer ao longo da campanha”.

Entramos hoje numa era de comunicação mais personalista, para além do intermédio dos grandes conglomerados de mídia. É isso que dá tanta credibilidade a figuras que “falam na lata” (mesmo que falem as maiores atrocidades). Mas este uso erótico da mobilização política não se resume aos Estados.

Entra Pablo Marçal e João Campos. Antes de serem duas figuras da política, são duas figuras que engajam, que despertam desejo; são figuras que atraem, mais do que afastam (e olha que Marçal afasta bastante). Os dois são referenciais de subjetividade. A identificação com Pablo Marçal vem muito do desejo de sucesso econômico do jovem periférico, de querer ser como ele; ter seu sucesso, sua “prosperidade”, mas, também porque ele simplifica a política e a transforma em piadinha, em meme. E um meme de um marmanjo mostrando uma carteira de trabalho num debate para prefeitura é muito mais engajante (positivo) do que um discurso sério com propostas sérias (negativo).

Já João Campos aparece em suas redes sociais dançando brega, anuncia sua agenda fazendo referência a clássicos da MPB, reproduz uma estética de memes de instagram para estimular o recebimento de mensagens de bom dia meu prefeito. A identificação aqui vem dele parecer só mais um de seus amigos das redes sociais. Acontece que, por sinal, ele é prefeito. Assim ele se aproxima do eleitorado, cria desejo de se acompanhar suas redes, cria proximidade com o recifense que pensa “será que meu prefeito já bebeu água hoje?”. Mas, verdade seja dita, é vantagem de João Campos o fato de a identidade cultural pernambucana ser bastante mais presente na vida cotidiana do recifense do que na maioria das outras capitais. Enquanto Marçal cria identificação por meio da vontade de prosperar e infantiliza a política, impedindo que um debate sério seja feito, João Campos faz o debate a partir da positividade derivada de sua identidade recifense. Neste sentido João campos é uma espécie de anti-marçal.

Significa então que a comunicação política estará sempre nas mãos da direita ou de quem já tem a máquina pública na mão? Natália Bonavides, do PT, parece desafiar esta realidade.

Fazia quase 30 anos que um candidato do PT não chegava ao segundo turno em Natal. Em 2024, Bonavides teve 44,6% dos votos. Seu segredo? Carisma (positividade) e clareza de suas pautas. É isto que Natalia Bonavides quer dizer quando diz que a esquerda precisa “reencantar”.  A esquerda precisa fazer uma comunicação positiva, condizente com o espírito do tempo: precisa atualizar seu entendimento quanto à engenharia libidinal nas mídias digitais, e seduzir mais do que atacar. E, principalmente, precisa não ter medo de ser esquerda. Afinal, com Trump de volta à presidência da (até então) potência hegemônica do mundo, os ataques da extrema-direita à América Latina só irão se intensificar. Este é o desafio do nosso tempo histórico, da segunda guerra-fria. Pode parecer uma conjuntura assustadora, mas os caminhos já estão dados. Eles passam pela superação do medo de assumir suas posições, mas de forma condizente com o modelo de engajamento e a sedução no meio digital (positivo).

@por_vir

A política fala hoje outra língua. Este é o mundo pós-letrado que Mark Fisher (2009) já anunciava. Em vez de produzirmos gigantescos tratados filosóficos sobre a obra de Marx, a política deve ser sedutora, engajante. Assim podemos (e devemos) aprender com o que dá certo com outros jogadores do meio político, gostando deles ou não. #Trump #Marçal #JoãoCampos #SãoPaulo #Recife #Eleições #Tiktok #LeftTikTok #Esquerda #Comunismo #Liberalismo

♬ som original – PorVir
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Luís Meira

Mestre pelo programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Linguagens, Mídia e Arte da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com o trabalho "Infiltrado no Chan: Economia e Identidade do ódio", sob orientação do Prof. Dr. Carlos Alberto Zanotti, onde foi bolsista do CNPq. É graduado em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela Universidade Católica de Pernambuco. Teve experiência como diretor de arte nas agências Shifty e 4com, em Recife. Possui conhecimento básico da língua alemã (Goethe Institut, A2), fluência na língua inglesa (Alpha Collegue of English-Dublin, B2+), atualmente estuda a língua japonesa (NCL-Recife, A2) e possui noções básicas da língua francesa (Aliança Francesa-Recife, A1.1).

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