Texto publicado na revista “Conexão – Comunicação e Cultura” em junho de 2022.
Resumo
Este trabalho tem por objetivo geral investigar como o atual paradigma econômico e material da comunicação digital foi instrumentalizado pelos discursos do ex-presidente Jair Bolsonaro
durante a pandemia da Covid-19, para tentar invisibilizar outros discursos e entendimentos de mundo, constituindo um modelo de subjetivação que busca o apagamento das negatividades. Para tanto, constrói-se um percurso teórico que transita entre o ideal iluminista da comunicação e as formas de exclusão de discursos outros, como o científico, na tentativa de esconder a realidade empírica em benefício do poder político e dos interesses do capital. Além da pesquisa bibliográfica com a qual foi construída a base teórica deste trabalho, recorre-se à Análise de Discurso de linha francesa para desnudar duas das diversas manifestações do ex-mandatário na tentativa de desqualificar os que denunciaram o alcance e a gravidade da crise sanitária. O resultado indica o exercício infantilizado do poder político, estratégia na qual o líder associa o medo à imaturidade dos que temem a contaminação e a morte.
Introdução
As vivências dos processos históricos trazem consigo o desafio de estudar o presente para que o futuro possa dele tirar seu aprendizado. O ano de 2020 marca a humanidade como um momento-chave para sua experiência de convivência em comunidade, em contato pleno com seu todo, globalizada. A pandemia da Covid-19 assolou a espécie humana em um momento em que os descompassos da comunicação e do entendimento mútuo já estavam em evidência. As redes sociais e os algoritmos de recomendação de conteúdo – bem como o direcionamento do consumo e a publicidade personalizados – solaparam ainda mais as possibilidades do encontro e o “tornar comum” sugeridos pela etimologia da palavra comunicação (WOLTON, 2010). É neste contexto que se encontra o sujeito contemporâneo: produto da modernidade tardia (HAL, 2006), deslocado e fragmentado perante sua subjetividade.
Apesar das mais de 2,4 milhões de mortes confirmadas à época pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2021a), a gravidade e a letalidade da doença foram postas em xeque por grupos que negam o conhecimento científico. O negacionismo da ciência e de outrasconquistas iluministas, no entanto, mais do que um sintoma da atual conjuntura de descompassos comunicacionais, se apresenta como condição para sua manutenção. O problema que identificamos, e que, portanto, justifica o debate que aqui vamos trazer, é que a negação da realidade empírica se constitui hoje como objeto de agenciamento político em busca do apagamento da negatividade, tal como postulado por Han ao descrever a condição da sociedade da transparência: “A pressão da aceleração acompanha a desarticulação da negatividade” (HAN, 2012, p. 12). Neste trabalho, entendemos que a pressão pela aceleração se mostra na negação material da gravidade da Covid-19 por seu número de mortes. A compreensão do atual estado da comunicação, tanto no Brasil quanto no mundo, passa pelo entendimento de suas materialidades, ou melhor, das lógicas que regem a comunicação, hoje digital, dentro do chamado capitalismo de dados (MOROZOV, 2017) como panorama contextual. É imprescindível esclarecer o funcionamento das dinâmicas comunicacionais, tanto em nível individual quanto institucional, para enriquecer o arcabouço teórico dos estudos linguísticos, discursivos e comunicacionais, entendendo-se que língua e política são faces da mesma moeda.
Partimos do princípio de que a não universalidade da comunicação ou discurso institucional atesta a não universalidade de suas políticas. Partindo deste postulado, esta pesquisa tem como objetivo geral investigar como o atual paradigma econômico e material da comunicação digital é instrumentalizado pelos discursos do ex-presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia, para, assim, tentar invisibilizar outros discursos e entendimentos de mundo, constituindo um modelo de subjetivação que busca o apagamento das negatividades. Este sistema de exclusão, de invisibilização, de discursos outros, pauta-se nos procedimentos teorizados por Foucault (2002, p. 316) para propor a existência de uma sociedade constituída a partir do discurso, onde se determinam quais sujeitos discursivos têm ou não o poder e, consequentemente, o direito à “voz” dentro de determinado território discursivo. Focamos nossa investigação em declarações do ex-presidente em dois momentos: em 29 de março de 2020, quando a pandemia começava a vitimar brasileiros; e no dia 4 de março de 2021, quando a média móvel de óbitos diários atingia o número de 1.353 vítimas, crescendo pelo 11º dia consecutivo.
Recuperamos declarações, com intervalo de quase um ano, por entendermos que ambas descrevem momentos diferentes da pandemia: uma em seu início e outra em um momento de extrema gravidade. Esta escolha se justifica por proporcionar uma prática analítica sobre a materialidade linguística no contexto histórico-social, visto ser o discurso um acontecimento histórico.
Metodologicamente, trata-se de um estudo bibliográfico aplicado a um estudo descritivo-interpretativo com abordagem qualitativa através da Análise de Discurso de linha francesa. Este dispositivo analítico é descrito como “um campo de pesquisa cujo objetivo é compreender a produção social de sentidos, realizada por sujeitos históricos, por meio da materialidade das linguagens” (GREGOLIN, 2006, p. 11). Para tanto, o trabalho foi separado em dois tópicos teóricos iniciais: Os impasses da comunicação e Infantilização da política, para depois apresentarmos o corpus da pesquisa na sessão Política da infantilização, onde trazemos a análise a respeito dos discursos presidenciais. Foram recuperadas as declarações do ex-presidente que atestam o direcionamento de suas falas exclusivamente ao seu eleitorado em busca de uma “vontade de verdade” em que a negatividade seja excluída, o que demonstraria uma forma de “solipsismo linguístico” em discurso institucional, portanto, dotado de influência e capital social (BOURDIEU, 1985, p.248). Entendendo o discurso presidencial como discurso de autoridade, portanto, hegemônico, pressupomos sua influência de subjetivação para o sujeito a quem se direciona, que acaba colocado em perigo de vida, considerando-se que ignorar a letalidade da Covid-19 o expõe a um maior risco de contágio.
Na primeira sessão, apoiamo-nos nos estudos linguísticos de Wittgenstein (1961) e Derrida (2001) para adentrarmos na questão da associação de sentidos na língua. Recorremos ainda a Foucault (2002), com a noção de discurso e vontades de verdade, para trazer à tona a questão do poder nos discursos. E trazemos teóricos da comunicação, como Luhmann (2007), Wolton (2010) e Evgeny Morozov (2017), para aprofundar a análise dos dispositivos sociais de comunicação via internet. Na segunda sessão, nos aprofundaremos na crítica à lógica neoliberal que comanda as dinâmicas da comunicação digital e que, como entendemos, contribui para a produção de discursos negacionistas e, em última instância, para com a morte de grupos em estado de vulnerabilidade. Para fundamentar nosso entendimento da atual conjuntura, trazemos conceitos de amadurecimento e vivência da cotidianidade, de Agnes Heller (2011), e o aplicamos à ideia de sociedade da transparência de Byung-Chul Han (2012), na sessão seguinte.
OS IMPASSES DA COMUNICAÇÃO
O atual contexto de infinitas vozes mediadas pela comunicação digital nos impele a uma breve revisão teórica a respeito da língua e seu funcionamento como dispositivo de representação simbólica. É um postulado comum das obras O monolinguismo do Outro (2001), de Jacques Derrida, e Tractatus Logico-Philosophicus (1961), de Ludwig Wittgenstein, a ideia de que língua, e, portanto, discurso, são, ambos, representações a posteriori, carentes de uma universalidade que afeta a todos com igualdade. Respectivamente, as obras expressam este postulado pelos aforismos “Eu não tenho senão uma língua, e ela não é minha” (DERRIDA, 2001, p. 13) e “Os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo” (WITTGENSTEIN, 1968, p. 111). Na obra de Derrida, o autor aponta que a pessoa, por mais que conheça várias línguas, tende a eleger uma como sua principal, sua língua mãe. É esta sensação de posse de uma língua que lança o indivíduo à ilusão de completude no ato de dizer. Este “idioma absoluto”, no entanto, permanece inalcançável e, portanto, se apresenta apenas como “promessa” (DERRIDA, 2001, p. 100), uma vez que a língua não carrega a qualidade de imanência com o indivíduo e suas representações. Em outras palavras, a língua não lhe é una, não é transparente. Logo, aquilo que dizemos e como dizemos não nos pertence, não são representações universais (ontológicas), mas fazem parte de um sistema de representações simbólicas previamente estabelecidas. É neste sistema que o sujeito se apoia para pôr em comunhão suas ideias. Trazendo o conceito de “vontade de verdade”, postulado por Foucault (2002, p. 17), relacionamos essa aparente universalidade da língua com a produção de um “consenso da verdade”, quando o sujeito ocupa uma posição de poder no interior de um espaço discursivo, colocando sua fala como “verdade absoluta”. Entendemos que nesta produção de “vontade de verdade” aquilo que o discurso não abrange assume a posição de ruído, de outro.
Sobre a língua e os entendimentos de mundo, Wittgenstein, no citado, acaba por tocar também na questão da volatilidade dos sistemas de representação, aos quais o filósofo atribui abordagem lógica. Para Wittgenstein, a linguagem é composta por proposições que representam os fatos do mundo, assim como um mapa representa o planeta, e uma foto representa uma cena. Wittgenstein põe em xeque a ilusão de entendimento absoluto (ontológico) do mundo a partir da experiência individual:
Não podemos pensar o que não podemos pensar, por isso também não podemos dizer o que não podemos pensar. Esta observação dá a chave para decidir a questão: até onde o solipsismo é uma verdade. […] Que o mundo é o meu mundo, isto se mostra porque os limites da linguagem (da linguagem
que somente eu compreendo) denotam os limites do meu mundo. (WITTGENSTEIN, 1968, p. 111, grifos do autor)
Vemos, portanto, que é pela representação, pelos sistemas simbólicos, que se entende o mundo, que se lhe atribui simbologia a posteriori. A representação do mundo passa pelo escrutínio da língua, de sua descrição lógica, que se coloca na comunicação como base substancial. Os consensos, como se pode entender a partir do exposto, nunca são gerais, absolutos, pois esbarram nos limites da língua. Ou seja, os consensos encontram limites na compreensão da realidade empírica, o que implica a dificuldade da tarefa da comunicação – do tornar comum. Eis o grande impasse da comunicação no século XXI, segundo o sociólogo francês Dominique Wolton:
[…] a revolução do século XXI não é a da informação, mas a da comunicação. Não é a da mensagem, mas a da relação. Não é a da produção e da distribuição da informação por meio de tecnologias sofisticadas, mas a das condições de sua aceitação ou de sua recusa (WOLTON, 2010, p. 15).
Dentre os conflitos, ruídos e irritações sistêmicas (LUHMANN, 2007) que a realidade do processo de comunicação do mundo contemporâneo nos coloca, o desafio de sua administração é o que mais se destaca como produto da ilusão de unicidade que a internet traz. “Ontem, comunicar era compartilhar e reunir, ou unir. Hoje, é mais conviver e administrar as descontinuidades” (WOLTON, 2010, p. 27). O impasse na administração das descontinuidades, ou seja, das diferenças de representações de mundo, é uma das consequências do que Morozov (2017, p. 179) denomina “positivismo do consenso algorítmico”, quando os sistemas de comunicação formam consensos artificialmente, excluindo a negatividade – aquilo que não lhes convém mostrar ao usuário.Trata-se, ao que entendemos, de um sintoma do paradigma da anteriormente citada “sociedade da transparência” (HAN, 2012); da plena positividade como característica do espírito do tempo contemporâneo, mediada pela tecnologia e pelo neoliberalismo.
Evgeny Morozov (2017) entende que a impossibilidade de se administrar as negatividades da comunicação é, em grande medida, resultado da percepção supostamente objetiva de que a comunicação digital está acima de qualquer viés e que, logo, a realidade mediada pela tecnologia se apresenta como ontológica. É a partir desta produção de “vontades de verdade”, mediada pela tecnologia, que a pós-verdade se apresenta como espaço comum de subjetividades, das quais os discursos bolsonaristas se apropriam de forma a cativar seu eleitorado.Segundo Santos e Spinelli (2017), a pós-verdade emerge no momento em que as pessoas buscam principalmente evitar evidências desconfortáveis. Na pós-verdade, rumores, boatos, fofocas e mentiras são compartilhados com mais velocidade, em um cenário formado por redes, cujos atores confiam mais uns nos outros do que que em qualquer outra instituição, seja a universidade ou órgãos de imprensa (2017, p.2). Neste paradigma digital, a premissa da pós-verdade se apoia na lógica da publicidade, que amarra as dinâmicas da comunicação digital dentro da lógica do capitalismo de dados (MOROZOV, 2017). Os algoritmos de recomendação, cuja função é entregar conteúdo e publicidade de maneira personalizada ao usuário das redes sociais, carregam consigo o potencial de “remodelar antigos vieses culturais, raciais e étnicos como verdades objetivas e empíricas” (MOROZOV, 2017, p. 179).
Seguindo a máxima aristotélica de que o homem é um animal político, e levando em consideração que a política é a forma de manutenção da sociedade, recorremos a Luhmann,(2007) estudioso que vê na comunicação o operador central do sistema social:
[…] o sistema sociedade não se caracteriza por uma determinada ‘essência’ (Wesen) nem muito menos por uma determinada moral (propagação da felicidade, solidariedade, nivelação de condições de vida, integração por consenso racional, etc.), mas sim unicamente pela operação que produz e reproduz a sociedade: isto é a comunicação. (LUHMANN, 2007, p. 47-48)
Portanto, o enfraquecimento de suas capacidades de comunicação trazido pelo atual paradigma comunicacional denota, consequentemente, o enfraquecimento de suas habilidades políticas. Este enfraquecimento se daria pelos “efeitos de verdade” (CHARAUDEAU, 2006) decorrentes da comunicação digital em sua lógica de produção de valor: mostrar conteúdo personalizado que agrade ao usuário para que este passe mais tempo na plataforma e produza mais dados. O “efeito de verdade” está na crença de que algo é verdadeiro. É neste contexto que se encontra o atual paradigma do fazer político instrumentalizado pela comunicação do ex-presidente Bolsonaro: uma comunicação mediada pela lógica da publicidade personalizada que, consequentemente, tornaria seu interlocutor incapaz de abarcar e lidar com as descontinuidades e negatividades do convívio em uma “sociedade da transparência” (HAN, 2012). Na pandemia do novo coronavírus, no entanto, a exclusão da negatividade configurou um risco à vida a quem a comunicação se dirigia.
INFANTILIZAÇÃO DA POLÍTICA
“Prove esta delícia. Experimente este sabor e esqueça-me, se for capaz. Um paraíso tropical ao seu alcance. Gostoso como ele só. Uma festa para o seu paladar. Ele carrega você para onde quiser” (LEMINSKI, 2017, p. 37). É com este apelo tipicamente publicitário que Paulo Leminski inicia seu texto-ninja Vai uma mãe aí?. O autor continua:
Publicidade, TV, cinema, todos os aparatos de comunicação de massa da nossa civilização parecem estar a serviço da tarefa, simples e complexa, de reduzir tudo mundo à condição infantil. […] O supermercado, o shopping center e até a própria cidade, sob certos aspectos, tendem a ser um equivalente do seio materno, do colo e do útero. (LEMINSKI, 2017, p. 37)
No exercício do texto-ninja, Leminski mistura as poéticas da crônica com a emotividade da publicidade e a sobriedade da estratégia de docilização dos corpos, dos sujeitos, que a prática traz. A poesia de Leminski bem ilustra o apagamento de negatividade, comum à publicidade, que Byung-Chul Han (2012) identifica nas relações do que chama “sociedade da transparência”. No contexto da crítica neoliberal que permeia a obra de Han, a ideia de negatividade – da interrupção de gozo pelo que quer que seja – se apresenta como o ruído que deve ser apagado. Para que a negatividade da interdição do gozo pelo ruído seja desarticulada, como propõe como máxima da ideologia do liso (HAN, 2019, p. 7) – do que não se opõe ou oferece resistência –, o ruído precisa ser eliminado. No entanto, a vivência plena da cotidianidade pressupõe a coexistência com o outro, com a negatividade que impede seu gozo pleno. Para Agnes Heller (2011), filósofa húngara, autora de O cotidiano e a história (2011) e aluna de György Lukács, é na vivência do espaço do dia a dia que se forma o sujeito adulto, uma vez que
O amadurecimento do homem significa, em qualquer sociedade, que o indivíduo adquire todas as habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em questão. É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade. (HELLER, 2011, p. 33)
A cotidianidade, segundo a autora Heller, é onde homens e mulheres exteriorizam “suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias” (HELLER, 2011, p. 31), que vivem sua coletividade “por inteiro”. É neste cenário que se experiencia o que podemos chamar de “infantilização da política”: a política se apresentando como eliminação da negatividade, do ruído de determinado discurso, contrapondo-se à ideia de convivência plena do indivíduo com a sociedade, nos termos de Heller (2011). A “infantilização da política” seria então a metáfora do acalanto do discurso institucional com seu eleitorado cativo, como a mãe que diz ao filho que todos os males que o afligem não passam de frutos de sua imaginação. Esta condição hipotética se alcançaria, portanto, pelo apagamento do discurso do outro visando a continuidade plena de uma “vontade de verdade”, ou seja, por uma espécie de “solipsismo linguístico” que pode ser percebido na materialidade dos discursos bolsonaristas no ano de 2020. Solipsismo é aqui aplicado na condição genérica de que, além do ser, só existem as experiências do indivíduo.
O solipsismo é uma corrente filosófica que sustenta que apenas a própria mente é certa de existir, e que o mundo externo é irrelevante para que se compreenda a realidade. Wittgenstein (1968) aponta que, para o solipsista, o mundo é a totalidade dos fatos percebidos por si, sendo a linguagem a única maneira de se ter conhecimento do mundo. Na teoria wittgensteiniana, se “Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo” (WITTGENSTEIN, 1968, p. 111), se pressupõe que o discurso político que exclui o outro e direciona seus discursos – e, portanto, sua língua – a um grupo específico, acabará por “docilizar” este interlocutor, apagando a negatividade de seu discurso, ao preço de deixar de fora aqueles cuja presença institui um “impedimento de gozo”, encarnando assim a negatividade que se busca eliminar. Se os limites do mundo denotam os limites da língua e esta não inclui o outro – o ruído, o negativo – logo, este “mundo”, segundo o aforismo, não pressupõe a existência deste “outro”. Uma vez que a língua – no discurso da “política infantilizada” – não pressupõe a existência destes ruídos, ao se apresentarem o fazem assumindo a posição a priori de algo a ser eliminado. Este fenômeno conceitual se faz possível a partir da simbiose da política com a mídia, descrito por Jesper Strömbäck (2008) ao esquematizar as quatro fases da midiatização da política no mundo ocidental. É na quarta fase, a atual, que as lógicas do fazer político e midiático se misturam:
A quarta fase da midiatização é alcançada quando atores políticos e sociais não apenas se adaptam à lógica da mídia e aos valores predominantes nas notícias, mas também os internalizam e, mais ou menos conscientemente, permitem que a lógica da mídia e os padrões de valor de notícia se tornem uma parte interna dos processos de governo. (STRÖMBÄCK, 2008, p. 239-240)
Entende-se, então, que a lógica do fazer político hoje carrega subjacentemente a lógica da midiatização e, portanto, da publicidade dentro deste contexto de sociedade da transparência (HAN, 2012). Ao olharmos para os discursos de Bolsonaro, especificamente, percebe-se que os sujeitos de seus discursos são essencialmente atomizados, raramente almejando a universalidade ou a recepção de toda a população, o que sustentaria a ideia de “solipsismo linguístico”. São discursos direcionados à manutenção coletiva da realidade e do entendimento de mundo de seus apoiadores, de sua base eleitoral, carregando a ilusão de unanimidade, de consenso, de totalidade, enquanto aos grupos excluídos – do discurso – sobra a qualidade de “outros”.
Tais discursos, inseridos na lógica da quarta fase da midiatização da política, carregam em si mais traços do fazer midiático que do fazer político, uma vez que o que está em jogo aqui é, não a mediação dos diversos setores da sociedade (a comunhão), mas a midiatização da experiência de mundo do grupo político hegemônico. A midiatização, muitas vezes arbitrária, da instância superior de um governo, pressupõe a manufatura da percepção de realidade de seus interlocutores, como se vê na pandemia da Covid-19. “Em aspectos importantes, a realidade midiatizada substitui a noção de confiança em realidades objetivas”(STRÖMBÄCK, 2008, p. 240). Entendemos aqui que seja esta a dinâmica que guiou os governos negacionistas da gravidade da epidemia para com os veículos de imprensa e de divulgação científica. Impôs-se assim o fruto do solipsismo linguístico. É a partir do exposto que analisamos duas declarações do presidente brasileiro com relação ao novo coronavírus.
POLÍTICA DA INFANTILIZAÇÃO
O corpus levantado para este trabalho foca em duas declarações de Bolsonaro identificadas por regularidades discursivas que formalizam o eixo temático que aqui denominamos “discurso infantilizado”. A partir deste eixo, trazemos para a análise excertos discursivos que se encaixam na definição de “infantilização da política”: o discurso político como apagamento das negatividades que compõem a cotidianidade nos termos de Heller (2011). Identificamos, a partir desta regularidade discursiva, o que chamamos de “formação discursiva da aceleração” (HAN, 2012), da exclusão da negatividade. Segundo Pechêux (1988, p. 160), formação discursiva é “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, […] determina o que pode e deve ser dito”.
Acreditamos que o sujeito do discurso infantilizado construa sua memória discursiva e, consequentemente, sua identidade a partir dos discursos que o constituem de forma a simplificar os entendimentos da realidade, apagando a complexidade por meio da desarticulação da negatividade, para permitir a manutenção do discurso hegemônico da primazia do capital, que não poderia ser detido nem por um vírus mortal. Esta hipótese pode ser comprovada quando, no final de março de 2020, com a brusca subida na curva de mortes pela Covid-19 no exterior, o iminente aumento de número de casos no Brasil (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2021b) e a declaração do status de pandemia pela OMS no dia 11 (BBC, 2020) do mesmo mês, a negação da gravidade já constituía a negação da realidade empírica. No entanto, Bolsonaro seguiu enunciando discursos negacionistas, aos quais categorizamos como pertencentes à “formação discursiva da aceleração”. Os enunciados visavam à desarticulação da negatividade trazida pela pandemia e convidava os brasileiros a voltarem ao trabalho, mesmo que isto representasse um risco para suas vidas. No dia 29 de março de 2020, o Brasil já contava com uma média de 16 mortes a cada semana (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2021b). Contrariando recomendações de isolamento social indicado pela Organização Mundial da Saúde e por seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, Bolsonaro visitou lojas do comércio em Brasília e em cidades circunvizinhas (FERRAZ, 2020). Na ocasião, fez a seguinte declaração a respeito do novo coronavírus:
RECORTE 1
Temos o problema do vírus, temos, ninguém nega isso aí. Devemos tomar os devidos cuidados com os mais velhos, as pessoas do grupo de risco. Agora, o emprego é essencial. Essa é uma realidade. O vírus tá aí, vamos ter de enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, pô, não como moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida, todos nós vamos morrer um dia. (BOLSONARO apud FERRAZ, 2020, grifo nosso).
Na declaração, é possível entender que o direcionamento da fala do presidente é para parcela da população que nega a gravidade da Covid-19. A negação da iminente chegada da SARS-COV-2 ao Brasil, como de fato aconteceu, demonstra o descolamento do discurso científico do discurso institucional. Observe-se que a preocupação com o novo coronavírus é qualificada como “atitude de moleque” e que atenta contra a economia brasileira, uma vez que “o emprego é essencial”.
Após estabelecer que o vírus é, de fato, um problema, dizendo “Temos o problema do vírus, temos, ninguém nega isso aí”, o então presidente contrapõe sua declaração com “Agora, o emprego é essencial. (…) vamos ter de enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, pô”, o que direciona sua fala ao interdiscurso da virilidade exacerbada presente em sua trajetória política. Não são poucos os vídeos em que ele aparece respondendo grosseiramente a opositores, o que criou sua imagem de “não político” ou de alguém que “fala sem papas na língua”. Além desimplificar a complexidade do problema, esta declaração associa o temor latente a uma suposta baixa virilidade de quem receava a doença, o que se percebe na expressão “atitude de moleque” direcionada a eles.
Em um segundo recorte, do dia 4 de março de 2021, um dia após o maior registro de mortes em um ano de pandemia até àquele momento, de 1.910 óbitos (BBC, 2021), o presidente fez a seguinte declaração em uma cerimônia de inauguração de um trecho da
ferrovia Norte-Sul, em São Simão (GO):
RECORTE 2
Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?
Temos que enfrentar os problemas, respeitar, obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades. Mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos? (BBC, 2021, grifo nosso).
Neste recorte é possível notar novamente a inserção do discurso presidencial na “formação discursiva da aceleração” e no interdiscurso da virilidade. Ao dizer que o luto pelas até então 250.000 mortes pela Covid-19 no Brasil seria “frescura” e “mimimi”, o então presidente simplifica seu discurso ao ponto de reduzi-lo a reações individuais que atentem contra a virilidade com a qual se apresenta recorrentemente. Mais uma vez, após colocar o vírus como uma realidade do país, Bolsonaro apresenta a contraposição “Mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?”, trazendo ao discurso a primazia da questão econômica perante a questão da saúde pública. As falas do então presidente deixam claro que aquilo que foge aos seus discursos e vontades de verdade são entendidos como “mimimi”, como “frescura”, como a negatividade que a formação discursiva da aceleração tenta apagar. O que denominamos “solipsismo linguístico” se faz presente no momento em que a instância de maior autoridade de um país – o presidente – impõe institucionalidade ao discurso negacionista, apontando previamente o discurso científico, o discurso jornalístico ou qualquer outro pautado no empirismo como ruído, como “molecagem”. As declarações do ex-presidente buscam consolidar, então, os seus discursos – e os de seus apoiadores – como legítimos dentro do discurso institucional a partir de sua posição de poder.
A “infantilização da política” se faz notar quando a negatividade do discurso é excluída em prol da aceleração, da eficiência mercadológica (HAN, 2012): “O emprego é essencial. Essa é uma realidade. […] Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida, todos nós vamos morrer um dia”. Acreditamos que a exclusão da negatividade do discurso, a negatividade da própria morte, trabalha aqui como um acalanto para os públicos a quem seu discurso se dirige: o capital, o empresário – cujas perdas causadas pelo isolamento social não podem ser sofridas –, e o bolsonarista comum, que não aceita interdições à sua vontade, mesmo que diante de um cenário de calamidade sanitária. É perceptível que, em ambas as citações presidenciais, o fazer político se confunda com o fazer midiático segundo os termos de Strömbäck (2008), com a incorporação da lógica midiática ao processo de governança. O perigo desta dinâmica é a exposição à infecção de grupos em vulnerabilidade, a população mais pobre, aquela que tem acesso desigual ao sistema de saúde. A “formação discursiva da aceleração” cai como uma luva tanto para quem deseja que seus funcionários continuem a trabalhar quanto para quem deseja não se preocupar com os cuidados que uma pandemia de um vírus mortal requer. É neste contexto que a defesa da “liberdade”, seja ela qual for, se instala nos discursos bolsonaristas.
Voltando à máxima de Wittgenstein (1968, p. 111), segundo a qual “Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo”, aplicada ao linguajar político, pode-se concluir que a exclusão sistemática de discursos alheios aos interesses de determinado grupo hegemônico em questão se configura como estratégia concreta de alienação na conjuntura da quarta fase da midiatização da política (STRÖMBÄCK, 2008, p. 239). Ao se excluir algo, a partir de uma instância institucional ou social superior – uma instância dotada de capital social (BOURDIEU, 1985, p. 248) e que, portanto, emana discurso
de autoridade –, não se pressupõe representação na língua e, consequentemente, no mundo do interlocutor. Entende-se, então, que um objeto não existe no mundo do sujeito se o mesmo não
for abarcado pela língua ou pelo discurso. Seria o equivalente a: “Não existe desigualdade se nela não se falar, não existe racismo se não se falar nele, não existe gravidade no coronavírus
se não se falar sobre”. Ao negar a existência de discursos outros, o discurso institucional infantiliza-se segundo os termos de Heller, da publicidade e da própria etimologia da palavra. “Infância”
vem do latim infantia, do verbo fari: falar – dizer, possuir a fala – em seu particípio presente fans, falante, e da negação in. Portanto, infans, o infantilizado, é aquele que não é capaz de falar, àquele cujo fruto de tais processos é a impossibilidade de carregar o sistema simbólico da língua necessário para a devida inserção no social e que, posteriormente, o prepara para a convivência com o próximo. Uma língua que só é entendida por um nicho não é uma língua do social. Entende-se que o apagamento de discursos não hegemônicos e a difusão do entendimento do outro impele o sujeito de língua infantilizada a comunicar-se apenas com seus pares, sendo esta uma dinâmica característica da pós-verdade (SANTOS; SPINELLI, 2017).
O que se enuncia nos discursos da língua infantilizada é, não o convite à comunhão, mas à eliminação do ruído, à eliminação do outro. Ao bloquear-se o ato de mediação da política com os mais diversos grupos e setores sociais tem-se, então, um corte no contrato social; um convite ao solipsismo das próprias visões, dos regimes de verdades que, uma vez que não são comunicados – Informar não é comunicar (WOLTON, 2010) –, são apenas informados, impostos.
Os sujeitos desta “política da informação”, da imposição, não partilham percepções de mundo comuns com seus determinados “outros”. Portanto, não se faz política, uma vez que o fazer político se pauta no exercício da comunicação, do tornar comum, de criar intermediações diplomáticas. O que se tem é um simulacro do fazer político. A exclusão dos discursos outros pelo discurso político institucional hegemônico, como se tentou no Brasil durante a pandemia, convida o interlocutor à exclusão da ideia de convivência no sujeito a quem o discurso se dirige. Um sujeito que desacredita na existência do racismo no Brasil sente-se à vontade para assim pensar uma vez que as falas que o reconhecem (o racismo) careceriam de legitimação. Assim, uma enunciação que não permeie seu discurso simplificado, liso, objeto de afecção e afiliação, torna-se ruído – um “mimimi”. Tem-se, assim, o produto da individualização da política, sinônimo daquilo que buscamos conceituar como “política da infantilização”: o sujeito cujo mundo se resume à percepção solipsista da cotidianidade e que, portanto, é incapaz de “viver por si mesmo sua cotidianidade” (HELLER, 2011, p. 33) uma vez que ela esbarra na cotidianidade do outro, a quem tenta silenciar.
CONCLUSÃO
A “infantilização da política” seria, então, resultante do atual contexto da quarta fase da midiatização da política, na qual a lógica midiática se mistura com a lógica do fazer político, característico do que Han (2012) chama de “sociedade da transparência”. O resultado desta dinâmica discursiva, onde a política se confunde com a publicidade e a lógica de mercado, adentra a comunicação institucional de um governo, momento em que seus sujeitos partilham apenas referenciais simbólicos que excluam discursos outros, a quem entendem como algo que lhes atrapalha o gozo.
Esta dinâmica foi especialmente perigosa durante a pandemia da Covid-19, pois a exclusão de discursos outros do discurso institucional acabou por excluir as linguagens científicas e outras falas autorizadas, o que contribuiu para expor mais pessoas aos riscos da doença e, consequentemente, à morte.
No caso dos discursos de Bolsonaro durante a pandemia, foi perceptível que, mesmo com os mais de 250 mil logo no primeiro ano da enfermidade, a pressão da aceleração o impele a desarticular a negatividade que a Covid-19 trazia. É a partir deste efeito que se apoiariam os discursos negacionistas emanados a partir da Presidência da República durante o governo Bolsonaro, se apropriando da lógica da comunicação em redes sociais digitais, que priorizam a produção de conteúdos de fácil divulgação, desarticulados de qualquer negatividade, para, assim, constituir o atual contexto do império da “pós-verdade”. É neste contexto que vidas se perdem em prol da manutenção do capital, e o luto torna-se uma “frescura”.
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