“Morte de CNPJ”: Positividade viral e Reducionismo do mundo
Vida e morte se ressignificaram no ano de 2020 com a pandemia de COVID-19. Viver, em seu sentido mais amplo, gozar a vida nas possibilidades oferecidas pela coletividade, imputa — neste período histórico — o significado da morte: morte minha ou do próximo. À palavra “vida” sobra então o significante esvaziado. “Vida” em 2020 representa uma vivência pela metade, castrada, não pelo isolamento social, pela interdição do gozo — pela quarentena, reservada à uma parcela privilegiada da classe trabalhadora multifuncional da era digital, que pode trabalhar pela internet –, mas porque o significante carrega hoje, imanentemente, a ideia da morte.
Pensa-se com frequência “será que estou contaminado? Será que contaminei alguém? Será que já tive o vírus de forma assintomática? Será que vou morrer ou levar a morte de algum parente ou amigo ou, até mesmo, um desconhecido?”. A hermenêutica da vida cotidiana na pandemia pressupõe a onipresença da morte tal qual a hermenêutica do estado de sítio e do estado de exceção da necropolítica, de Achille Mbembe (2003): o conjunto de “formas de subjugar a vida ao poder da morte (p.146). Configura-se então um estado de exceção (SCHMITT, 1992) viral, sob um estado de sítio (idem) urbano vertical, que transforma a rua em zona fronteiriça, distante da realidade dos apartamentos — como força de metáfora –, elevados, cuja realidade de seus habitantes lhes permite a imersão no que Franz Fanon (1991, p.39) chama de “princípio da exclusão recíproca”. Este conceito de Fanon é explicado por Mbembe:
Franz Fanon descreve vivazmente a espacialização da ocupação colonial. Para ele, a ocupação colonial implica, acima de tudo, uma divisão do espaço em compartimentos. Envolve a definição de limites e fronteiras internas por quarteis e delegacias de polícia; está regulamentada pela linguagem da força pura, presença imediata e ação direta e frequente; e isso se baseia no princípio da exclusão recíproca” (p.135, grifo nosso)
Enquanto os significados de vida e morte, em contexto de normalidade, se apoiam em um binarismo que os estrutura como parte de um signo maior: a existência em si; estes agora se embaçam e se ofuscam na manutenção da vida cotidiana, desta nova configuração de estado exceção: o estado pandêmico. No entanto, o binarismo concreto da vida pré-pandemia, na contramão da maior parte do mundo, mostra se manter para certos grupos no Brasil de 2020: os negacionistas da gravidade, dos riscos de vida que o vírus representa, aqueles a quem o vírus significa apenas uma “gripezinha”, amparados pela ideologia neoliberal do utilitarismo econômico.
Ideologia esta que legitima a exploração trabalhista de forma análoga à colonialidade da mão de obra precarizada, naturalizando a onipresença da morte como parte da hierarquia da vida cotidiana, que segundo Agnes Heller (2011) “não é eterna e imutável, mas se modifica de modo específico em função das diferentes estruturas econômico-sociais” (p.32). A partir desse pressuposto se pode supor que a estrutura da vida cotidiana hoje, a partir da hierarquia estruturante econômico-social dada pelo estado de exceção pandêmico — e amparada pelo princípio de exclusão recíproca — vá criar diferentes cotidianidades, portanto, diferentes percepções do que Heller chama de “cotidiano” e, consequentemente, diferentes percepções de mundo. Nestas diferentes percepções de cotidianidade se pode tanto aceitar a onipresença da morte quanto nega-la, uma vez que o peso da morte não ronde a fenomenologia do imediatamente dado, do “aqui e do agora”. Não havendo separação entre as ideias de “vida” e “morte”, o binarismo que aqui se forma é o da completa fusão dos dois, da aceitação da onipresença da morte; e da completa negação, do menosprezo simultâneo aos dois significantes (do “foda-se”), que passam a coexistir sob uma só significação: a da sobrevivência.
Seguir a normalidade social no contexto da exceção pandêmica pressupõe risco à manutenção da vida individual sob a ameaça de colapso social, que, consequentemente, pressupõe o risco à manutenção da vida coletiva e individual. Portanto, legitima-se a ideia do martírio, do sacrifício. Este nostálgico malabarismo cognitivo, emanado pelo negacionismo utilitário, da negação-aceitação da realidade à medida que se faz conveniente, se finca na tentativa de se conservar uma cotidianidade já inexistente. Para tal, se faz necessário um apagamento extremo da narrativa, não histórica, mas vigente: da narrativa do risco constante de vida.
A manutenção de fantasia de normalidade se faz crucial para a desaceleração do retrocesso econômico, exigindo a legitimação do sacrifício de capital humano, do CPF, através de estratégias epistemológicas que se impõem pelo “bem maior” de salvar o capital financeiro, o CNPJ, e que, no caso do Brasil, são institucionalizadas como plano de governo. Plano de governo este cujo discurso assume verbalmente a pressuposição da morte de uma classe trabalhadora já previamente desamparada, precarizada, individualizada e desumanizada — coisificada –, na lógica da “pejotização” (ANTUNES, 2018), da concorrência de mercado, de onde impera o “cada um por si”. Um vírus com relativa baixa mortalidade mas com alto potencial de transmissão permite brechas por onde a luz do desejo fantasístico de normalidade invada o imaginário coletivo e, principalmente, capitalista. E esta é, precisamente, a tragédia da dinâmica social que se escancara na pandemia: o conflito de percepções e práticas de mundo que se constrangem e se castram na tentativa conservadora de manutenção do status quo diante da condição da exceção viral.
Positividade viral
O negacionismo não é exclusividade do Brasil. A prepotência da certeza da vida se apoia no que Byung-Chul Han (2012) chama de excesso de positividade, emanado pela ideologia da transparência e da aceleração — da impossibilidade de recuo do capital, de parar, de não produzir — uma vez que “a pressão da aceleração acompanha a desarticulação da negatividade” (idem, p.12). No entanto, o Brasil é um caso de exceção diante do resto do mundo. A novidade aqui é que o negacionismo é institucionalizado e positivado. Sustentado como equivalente legítimo de paridade com o discurso científico, o discurso médico. Negar as normas internacionais de contenção da infecção do novo corona vírus, como o isolamento, assume a posição legítima e compreensível de “querer trabalhar”, “manter a economia funcionando”, “sustentar a família”, enfim. Exclui-se toda significância da morte para que se venda então uma ideia de vida “não-castrada”, uma vida sem os claros ruídos e possíveis interrupções que o significante [vida] carrega no ano de 2020. O negacionismo torna-se produto da transparência (idem) e da fome de positividade do capital:
As coisas se tornam transparentes quando abandonam toda a negatividade, quando se alisam e aplanam, quando se inserem sem resistência na corrente lisa do capital, da comunicação e da informação. As ações tornam-se transparentes quando tornam-se operacionais, submetendo-se ao processo do cálculo, da direção e do controlo. (…) As coisas tornam-se transparentes quando se despojam da sua singularidade e se exprimem completamente na dimensão do preço.
(HAN, 2012, p. 11–12, grifos do autor)
A possibilidade de ilusão de positividade, de relativismo, vem de uma combinação pontual de baixa mortalidade com alta transmissibilidade da COVID-19. O trunfo mortal do novo corona-vírus não é, apenas, o risco de vida que traz ao seu hospedeiro, mas a possibilidade de uma fantasia de normalidade.
Percebe-se constantemente a instrumentalização desta fantasia por parte do governo Bolsonaro. Instrumentalização institucionalizada pelo poder executivo. Um episódio que se destacou da manutenção desta fantasia foi o encontro marcado de última hora (para não dizer “imposto”) do presidente da república com um grupo de empresários ao STF no dia sete de maio de 2020 para pedir a reabertura do comércio pelo país, que se encontrava suspenso devido à quarentena e às medidas de contenção tomadas por governadores e prefeitos[2]. Na ocasião o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (ABRINQ) Synésio Batista da Costa disse:
O que a gente não queria era por conta de ter estado junto no combate da pandemia, o meu coração está batendo a 40 eu não consigo retomar. Os funcionários caem todos na nossa folha e eu tenho um inimigo lá fora, que é meu adversário comercial prontinho para suprir o mercado inteiro e então haverá morte de CNPJ. (sic)[3]
Parte, então, do topo do poder executivo a racionalização da negociação da vida pela manutenção do capital sob a ameaça do mercado externo e consequentemente, de instabilidade social.
É sintomático da sociedade neoliberal, da aceleração, da eficiência (HAN, 2012), que o capital se apoie do controle da vida — como biopolítica (FOUCAULT, 2008) –, ressignificando seu sentido, o que acontece de forma acentuada no contexto da pandemia pelas chamadas indústrias liofilizadas (ANTUNES, 2018). Na indústria liofilizada “as substâncias vivas são eliminadas e o trabalho vivo é substituído pelo trabalho morto, pela maquinaria tecnológico-informacional-digital que hoje tipifica o processo de “enxugamento” das empresas” (p.197).
O “enxugamento” das empresas liofilizadas, visando o melhor desempenho, preserva
de um lado, em escala minoritária, o trabalhador polivalente e multifuncional da era informacional-digital, capaz de exercitar sua dimensão mais intelectual com maior intensidade. De outro, uma massa de trabalhadores precarizados, terceirizados, flexibilizados, informalizados, cada vez mais próximos do desemprego estrutural.
(ANTUNES, 2018, p. 198, grifo nosso)
Configura-se então a atomização de setores diversos da sociedade e, consequentemente, a atomização das simbolizações, das interpretações, dos fenômenos que o momento histórico traz. De um lado se tem o trabalhador multifuncional, polivalente, cujo fruto do trabalho é a informação, a intelectualidade, o gerenciamento, que pode ainda funcionar à distância, de casa; do outro se tem o trabalhador precarizado, terceirizado, “uberizado” (idem), que vende sua mão de obra física, seja na produção fabril, seja no setor de serviços por aplicativos como o Uber ou o Rappi. Este trabalhador terceirizado, carente dos seguros trabalhistas que a indústria liofilizada lhe castra, e, ainda por cima, exposto ao espaço urbano viral se metaforiza com a ideia de sobrevivente de Elias Canetti, trazida por Mbembe:
o sobrevivente é aquele que, tendo percorrido o caminho da morte, sabendo dos extermínios e permanecendo entre os que caíram, ainda está vivo. Ou, mais precisamente, o sobrevivente é aquele que após lutar contra muitos inimigos, conseguiu não só escapar com vida, como também matar seus agressores. Por isso, em grande medida, o grau mais baixo da sobrevivência é matar. Canetti assinala que na lógica da sobrevivência, “cada homem é inimigo de todos os outros”. Mais radicalmente, o horror experimentado sob a visão da morte se transforma em satisfação quando ela ocorre com o outro. É a morte do outro, sua presença física como um cadáver, que faz o sobrevivente se sentir único. E cada inimigo morto faz aumentar o sentimento de segurança do sobrevivente.
(MBEMBE, 2003, p.142)
No contexto da pandemia, da onipresença da morte em vida, assim como no contexto colonial descrito por Mbembe, a lógica do sobrevivente se funde com a cotidianidade e incentiva a profunda individualização, que vai se guiar com base nas suas condições práticas, utilitárias. A partir daí se tem a dimensão biopolítica da política neoliberal. Ao castrar a classe trabalhadora de seguridade trabalhista, arriscar a vida pelo trabalho torna-se aceitável e até desejável, uma vez que não se considera a possibilidade de cuidado pelo estado. A completa ausência da política de bem-estar social metaforiza o trabalhador à condição de sobrevivente uma vez que ao contexto cotidiano impera a epistemologia individualista. “É característica igualmente da vida cotidiana a sua imediaticidade e o pensamento manipulador. No plano da cotidianidade o útil é o verdadeiro, porque é este o critério de eficácia. O critério de validez no cotidiano é o da funcionalidade.” (CARVALHO, 2007, p.25), escreve Maria do Carmo Brant de Carvalho a respeito da teoria da vida cotidiana, de Agnes Heller, na qual nos aprofundaremos mais à frente.
Há no Brasil, hoje, uma disparidade de narrativas engendrada pela lógica do sobrevivente, “do cada um por si”, característica da sociedade neoliberal positivada, que “exclui tanto a dialética quanto a hermenêutica” (HAN, 2012, p.15), que se configura como técnica de governo: a clássica alienação da teoria marxista, porém, extremada pelo contexto de resposta da ideologia neoliberal à exceção pandêmica. A alienação, então, além de vir do mercado, vem dos discursos do poder executivo, que no Brasil de 2020 é, essencialmente, mercado.
Esta lógica institucionalizada do individualismo do sobrevivente nem de longe é exclusiva da pandemia, mas extrema-se nela. Soma-se à alienação trabalhista — já em curso crescente nos últimos anos — a alienação narrativa, do apagamento das identidades coletivas, do que Heller (2011) chama de “homem inteiro”, aquele que “participa da cotidianidade com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade” (p.31) e que, portanto, racionaliza a forma genérica de si na coletividade e da coletividade em si. Nesta lógica de sobrevivência do estado de exceção pandêmico os interesses de diversos setores sociais entram em choque — uma vez que a não comunhão entre estes grupos é, inclusive, incentivada pelo poder executivo — e a manutenção da vida se dociliza perante à presença da morte. Para tal, se faz necessária a hegemonia de epistemologias individualistas, contrárias ao ideal de “homem inteiro” e do entendimento das mazelas da sociedade como um todo. Explicamos.
Cotidianidade fragmentada
Na contramão do alcance pandêmico da infecção de COVID-19, é endêmico no Brasil a heterogeneidade dos interesses governamentais e da sociedade civil no contexto da pandemia. O trabalhador precarizado, “por-si-empresariado” — que Foucault (2008, p.310) conceitua como unidade-empresa — capitula à imposição pura do gozo do capital enquanto parte do grupo trabalhador polivalente da era da informação trabalha de casa e outra capitula à ideologia neoliberal, ansiando pelo fim da quarentena, esta tida, muitas vezes, não como medida de proteção à vida, mas como “capricho político” de certos governadores. Enquanto, de outro lado, tem-se a pressão pelo desempenho cego, inconsequente, pelo setor empresarial e, portanto, pelo poder executivo.
“Viver”, no Brasil de 2020, torna-se, então, um triplo significante. Carrega a significação do gozo, da morte e da pulsão de morte; do gozo desenfreado. A vivência cega do cotidiano pandêmico por meio da fantasia de um outro cotidiano que já não existe mais põe em cheque o cotidiano presente daqueles que não gozam do luxo da possibilidade de negacionismo. Esta vivência cega, fruto da alienação positivada, da aceleração emanada pelo capital, individualiza o papel do sujeito perante à coletividade, apagando sua narratividade e reduzindo suas potencialidades existenciais. Reduzindo suas potencialidades existenciais e, consequentemente, narrativas, reduz-se, portanto, seu mundo externo, seu entendimento de coletividade, bem como a relevância da existência do outro.
Se reduz o peso da alteridade, do meio, do que Heller chama de “genericidade” (2011), que entra em choque constante com a “individualidade” de forma inconsciente (p.38). Na teoria de Heller
O homem singular não é pura e simplesmente indivíduo, no sentido aludido; nas condições da manipulação social e da alienação, ele se vai fragmentando cada vez mais “em seus papeis”. O desenvolvimento do indivíduo é antes de mais nada — mas de modo algum exclusivamente — função de sua liberdade fática ou de suas possibilidades de liberdade. A explicitação dessas possibilidades de liberdade origina, em maior ou menor medida, a unidade do indivíduo, a “aliança” de particularidade e genericidade para produzir uma individualidade unitária.
(HELLER, 2011, p.37, grifo do autor)
E acrescenta:
A consequência disso é uma certa distância, graças a qual o homem pode construir uma relação com sua própria comunidade, bem como uma relação com sua própria particularidade vivida enquanto “dado” relativo.
(HELLER, 2011, p.38, grifo do autor)
Ou seja, o indivíduo se desenvolve a partir da liberdade das escolhas individuais. Escolhas essas — como a escolha do trabalho — que, apesar de particulares, são manifestações genéricas, “humano-genéricas”, como Heller (p.36) chama, uma vez que se direcionam à coletividade. Para o desenvolvimento de si é necessária uma certa “distância” do indivíduo com a coletividade. Distância pela qual o indivíduo se reconhece como parte emancipada do meio em que vive. A alienação, o apagamento das narrativas excluem esta distância, de forma que a cotidianidade dada se torne inquestionável, uma vez que não há a reflexão do indivíduo com a realidade imediatamente dada. Então, às interpretações dos símbolos da vida cotidiana sobram a significação mais rasa, mais preparada para o consumo imediato.
“Também é possível considerar como humano-genéricos, em sua maioria, os sentimentos e as paixões, pois sua existência e seu conteúdo podem ser úteis para expressar e transmitir a substância humana” (idem, grifo do autor). Podemos considerar esta “substância humana”, que se transmite pela genericidade — tendo como particularidade apenas o modo de se manifestar (idem) — e afeta diretamente a vida particular como a cultura, a moral, a instância do simbólico ou do superego na psicanálise lacaniano-freudiana. Esta ideia se baseia também na atribuição que Heller faz à ética como valor que guia a individualidade submetendo-se ao genérico:
A ética como motivação (o que chamamos de moral) é algo individual, mas não uma motivação particular: é individual no sentido de atitude livremente adotada (com liberdade relativa) por nós diante da vida, da sociedade e dos homens. Uma das funções da moral é a inibição, o veto. A outra é a transformação, a culturalização das aspirações da particularidade individual.
(HELLER, 2011, p.39, grifo nosso)
O indivíduo se forma na genericidade e atua sobre ela. A genericidade, de onde se firma a vida cotidiana, é um conjunto de normas morais (simbólicas) e práticas, uma vez que
É característica igualmente da vida cotidiana a sua imediaticidade e o pensamento manipulador. No plano da cotidianidade o útil é o verdadeiro, porque é este o critério de eficácia. O critério de validez no cotidiano é o da funcionalidade.
(CARVALHO, 2007, p.25)
Logo, diante de diversas realidades práticas e simbólicas que são marca da contemporaneidade e das dinâmicas de classe na sociedade, podemos considerar então que existam diversas percepções práticas de cotidianidade, que mudam a partir do critério de eficácia e da simbolização individual da moral dentro de determinado grupo.
A vida cotidiana é a vida de todo homem, pois não há quem esteja fora dela, e do homem todo, na medida em que, nela, são postos em funcionamento todos os seus “sentidos, as capacidades intelectuais e manipulativas, sentimentos e paixões, ideias e ideologias” (HELLER, p.31). Se o desenvolvimento do indivíduo é função de sua liberdade fática ou de suas possibilidades de liberdade, desenvolvimento este que se apresenta como “homogeneização” (idem, p.43) do individuo com a vida cotidiana heterogênea, o que propomos aqui é a categorização de um processo racional de alienação que barra este desenvolvimento, em função, também, da impossibilidade de liberdade. Barra-se o indivíduo do desenvolvimento emancipatório, homegeneizante, e vende-se a ilusão de genericidade pela alienação narrativa, fruto da sociedade da transparência, da positividade. Ao indivíduo sobra a condição de heterogeneidade sob a ilusão de totalidade, de universalidade. Constata-se que este processo não é novidade, como escreve Robson de Oliveira (2018):
A estratégia das políticas neoliberais é individualizante. Isso dito apenas para contrariar a expectativa de universalidade da política social. A questão aqui é outra. Os dispositivos individualizantes, operados pelas políticas sociais, capturam o indivíduo como entre disperso e desvinculado, como se sua ‘realidade’ fosse pessoal, exclusiva.
(OLIVEIRA, p.171)
A ilusão generalista da sociedade da transparência somada à castração do pleno desenvolvimento individual resulta no que aqui propomos chamar de “reducionismo do mundo”: a ilusão de ascensão à coletividade, quando, no entanto, a ideia de coletividade se resume às epistemologias e simbologias hegemônicas de determinado grupo, amparados pelo apagamento das narrativas coletivas.
A narrativa exerce uma seleção. A estrada narrativa é estreita, não admite senão determinados argumentos. Desse modo, impede a pululação e a massificação do positivo. O excesso de positividade, que domina a sociedade atual, é um indício de que ela perdeu a narratividade. O que afeta igualmente a memória. A sua narratividade distingue-a do acumulador, que trabalha de modo meramente aditivo e que acumula. Devido à sua historicidade, as marcas da memória acham-se submetidas a uma reordenação e inscrição constantes. (…) Hoje, a memória positiva-se como um amontoado de resíduos e de dados, como um “armazém de velharias”, ou um “depósito, cheio até acima […] de todas as imagens e símbolos gastos possíveis, completamente desordenados e mal conservados”. Neste armazém de velharias, as coisas limitam-se a ficar umas do lado das outras, não se estratificam em camadas. Por isso, esta memória é desprovida de história. Não pode recordar nem esquecer.”
(HAN, p. 50, grifo nosso)
Nos tornamos, então, acumuladores, formando nossa subjetividade através do imediatismo das condições práticas e funcionais do cotidiano, cotidiano este que se encontra atomizado, com símbolos e narrativas esvaziadas, mas que, ainda sim, alimentam uma ilusão de entendimento genérico, da coletividade, que permite fenômenos como o negacionismo científico. No entendimento acumulador, desprovido de narratividade e de história, é mais plausível, –referindo-se às fantasias dos grupos negacionistas, por exemplo — a ideia de que a COVID-19 tenha sido criada em laboratório ou que haja uma ostensiva perseguição por parte dos governadores ao poder executivo, uma vez que as teorias da conspiração e as narrativas fantásticas do cinema e do whatsapp acumulam-se com mais eficácia que a narratividade da história do planeta e de suas inúmeras pandemias.
Forma-se então o simulacro do “homem-genérico”, do “homem inteiro”, supostamente aquele que opera como um todo, que supera a heterogeneidade da vida cotidiana, mas sempre no âmbito da individualidade. Portanto, o simulacro da condição de estar consciente de seu papel individual no todo só pode ser alcançado quando o entendimento de todo é reduzido. E é nesta condição que se legitima o conflito de interesses, uma vez que o entendimento do interesse, do gozo do outro, não circula no imediatismo funcional da percepção de cotidianidade atomizada.
Portanto, se pode supor que, neste entendimento, seja possível que a percepção de prática funcional de determinado indivíduo possa muito bem prever que teorias da conspiração como as que envolvem a COVID-19 possam fazer parte de sua cotidianidade. Em um contexto de hiper conectividade e de interação dos mais variados setores da sociedade civil, o alcance da qualidade de ser humano-genérico proposta por Heller se mostra um trabalho muito mais demandante de seus sujeitos, no contexto de capitalismo tardio da segunda (quase terceira) década do século XXI, do que na época de sua concepção, em 1970, uma vez que a ideia de humano-genérico e cotidianidade agora se expandem pelo espaço amorfo dos ambientes digitais, não mais se limitando ao espaço geográfico. A condição de humano-genérico na aldeia global se torna difícil de alcançar, mas fácil de se almejar e até de se ver nela.
Reducionismo do mundo
A história se constrói em um processo dialético da memória, de constante “reordenação” e “inscrição” do acontecimento cotidiano, do singular ao coletivo, naquilo que chamamos de narratividade. No entanto, a narratividade vai de encontro ao que Han (2012) chama de sociedade da transparência, da “satisfação imediata, que não admite a imaginação de rodeios narrativos” (p. 31). Portanto, o “reducionismo do mundo” é um processo de apagamento da narratividade, da imposição da primazia da positividade perante a negatividade da história. É um processo de apagamento da comunicação, do tornar comum, e imposição da informação, da enunciação unilateral.
A negatividade não marca somente a experiência, mas também o conhecimento. Um único conhecimento pode, pondo enquanto o seu conjunto, transformar o anteriormente existente. A informação é desprovida desta negatividade. A experiência, igualmente, tem consequências, das quais surge a força da transformação.
(HAN, 2012, p.48)
O “reducionismo do mundo” é uma prática biopolítica na medida em que sua aplicação objetiva a interferência direta na manutenção da vida coletiva, eliminando a negatividade da cotidianidade e, assim sua narratividade, narratividade pela qual o indivíduo ascende à coletividade, nos termos ideais de Heller. Aplica-se o “reducionismo do mundo” quando se estimulam as diferenças das percepções de cotidiano de diversos grupos, que vêem sua cotidianidade como dada, atemporal e, portanto, inequívoca.
O individuo de mundo reduzido vive para si e para aqueles cuja transparência permite a projeção de si, para aqueles que supõe paridade. Em diferentes classes, como ficou perceptível na pandemia, o id, o instinto mais básico de sobrevivência se sobressai em grupos que, mesmo participando da coletividade, têm interesses atomizados, individuais. O capitalista, o empresário, chora a “morte do CNPJ” em passeatas contra o isolamento social enquanto o trabalhador precarizado chora a morte do CPF em vala comum. A partir daí muda-se a lógica das coisas materiais, que ganham vida, e das pessoas, que se reificam, coisificam. A lógica da vida e morte é aplicada à pessoa jurídica e a lógica do sucesso e do fracasso à pessoa física.
O ato de reduzir o mundo seu e do outro surge como racionalização da desvalorização do contrato social, que não abraça mais a infinidade de subjetividades que a sociedade carrega. Se a pandemia configura-se no extremo categórico de um estado de exceção, a dor da perda do próximo equipara-se com a dor da “morte de CNPJ”, neste contexto de sobrevivência individualista, que, portanto, qualifica o valor da vida como negociável. O “reducionismo do mundo” é um corte no valor simbólico das coisas a serviço das práticas bio e necropolíticas da sociedade da transparência. “A transparência é um estado de simetria. A sociedade da transparência aspira à alienação de todas as relações assimétricas.” (HAN, 2012, p.32). É neste contexto então que legitima-se a morte do outro, uma vez que seu estado de sítio pandêmico não faz parte da minha cotidianidade.
Para que o capital tenha o mesmo valor que a vida se faz necessário o apagamento da negatividade da morte. Para apagar a negatividade da morte é preciso apagar a alteridade, o outro, mesmo que simbolicamente. Calando o outro, ele não participa da minha cotidianidade. Para calar a voz do outro, é preciso que ele esteja voltado para si, na lógica do sobrevivente, afinal, morto não fala.
Conclusão
Ressalta-se aqui que o reducionismo do mundo é um processo epistemológico de alienação que se apoia na ilusão de entendimento da vida cotidiana como um todo, usado no contexto brasileiro à serviço das práticas biopolíticas do capital. Se reconhece aqui a breviedade com que certos conceitos foram abordados bem como a possibilidade futura de maior ligação com os postulados da necropolítica de Mbembe (2003). O indivíduo de mundo reduzido, no contexto imediatista da sobrevivência “empresarial-de-si”, colocar-se-á como engrenagem da máquina capitalista (que não pode parar!) e aceitará, então, as condições que a cotidianidade lhe impõem, afinal, sobra o entendimento de que sua realidade dada, fática, “é apenas a vida como ela é”.
O entendimento de políticas internas de cuidado ao cidadão, seguridade trabalhista, os valores do wellfare-state, unânimes pelo mundo no contexto atípico da pandemia, se tornam valores impossíveis de serem reivindicados uma vez que estes ultrapassam percepção de vida cotidiana brasileira. A aceitação, docilidade e o comprometimento da classe trabalhadora à onipresença da morte no contexto da pandemia se traduz como triunfo da ideologia neoliberal, que normatiza a desumanização que o constante risco de vida seu e do próximo trazem, na ilusão de que no atual contexto de exceção, não há outra alternativa viável.
O mundo torna-se então aquilo que a transparência da sociedade do desempenho lhe permite que seja. E num contexto social onde se institucionaliza o negacionismo, o corte da negatividade de um acontecimento histórico mundial como a pandemia da COVID-19, o mundo se transforma de tal forma ao ponto de que, para o indivíduo de mundo reduzido, se estabeleça, então, uma realidade paralela, única, local, individual, simplificada, infantilizada, reduzida.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão. São Paulo: Boitempo, 2018.
CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. O conhecimento da vida cotidiana: base necessária à prática social. In: COTIDIANO: Conhecimento e crítica. 7. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2007.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978–1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
HAN, Byung-Chul. A Sociedade da Transparência, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio D’Água, 2012.
HELLER, Agnes. O quotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo, sp: n-1 edições. 2018.
OLIVEIRA, Robson de. Neoliberalismo e Biopoder: o indivíduo como empresa de si mesmo. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 17, n. 1, p. 167–177, 2018.
SCHMITT, Carl. La dictature. Paris: Seuil, 2000; La notion de politique. Théorie du partisan. Paris: Flammarion, 1992.
[2] Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/com-aglomeracao-bolsonaro-guedes-empresarios-vao-pe-ao-stf-pressionar-por-reabertura-da-economia-1-24414698> Acesso em 27/05/2020.
[3] Fala do presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (ABRINQ), Synésio Batista da Costa, em 07 mai. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/com-aglomeracao-bolsonaro-guedes-empresarios-vao-pe-ao-stf-pressionar-por-reabertura-da-economia-1-24414698> Acesso em 27/05/2020.